A resistência e a beleza artística das Gabirobas

 

VANDER ANDRÉ – O cerrado, bioma que ocupa vastas áreas do Brasil, e onde a cidade de Bom Despacho está localizada, é um símbolo de resistência e riqueza natural. Nele, cresce a gabiroba, fruta muito característica na nossa região, que sobrevive nas condições mais adversas, oferecendo ao homem um exemplo claro de força e adaptabilidade.

Há alguns anos, o pai das cantautoras Alexandra Couto e Amanda Couto, Getúlio Araújo, chamava carinhosamente suas filhas de “gabirobas”, remetendo à memória afetiva de sua infância no cerrado, próximo ao Rio Picão. Este termo carrega consigo a essência de uma planta que, com suas flores sutis e aroma suave, representa beleza, doçura e propriedades medicinais. E hoje, curiosamente, a artista Amanda, em mais uma das suas artes, extrai da fruta gabiroba o óleo essencial raríssimo, com aroma adocicado.

Amanda e Alexandra (Foto: Renata Rigueira)

Alexandra e Amanda são filhas da tradicional Família Couto, com raízes profundas na música popular em nossa cidade.

Em homenagem à flora, fauna e culturas populares do cerrado, com sua simbologia de resistência e beleza, em 2021 as artistas Alexandra e Amanda retomaram o nome “Gabirobas do Cerrado”. Em 2023 deram esse nome à Associação, reafirmando o compromisso com a terra, as artes, a ecopedagogia, a agroecologia e suas tradições culturais. Foi a partir desta reconexão que se iniciou a remontagem do “Jardim de Estrelas”, um espetáculo cênico-musical para público infanto-juvenil que aborda vivências com a terra e cultivo, conectando passado e presente em um cenário de mudanças climáticas e desafios sociais.

Na virada cultural de 2023, as Gabirobas do Cerrado apresentaram “Jardim de Estrelas”, peça teatral de 30 minutos que conta como duas jardineiras de estrelas resistem aos desastres ecológicos, mudanças sociais e climáticas. Elas aprendem com os seres da Terra e com seus ancestrais a plantar sementes crioulas, o cultivo agroflorestal e a cuidar da vida no planeta.

Com toques de viola caipira e músicas autorais, o espetáculo favorece a consciência ambiental, a promoção de práticas agroecológicas, o acesso à memória e à construção de uma identidade plural cidadã. O espetáculo circulou a partir de maio deste ano na APAE, no Colégio Tiradentes, nos CEMEI Dona Íris, São Vicente, na escola rural do Mato Seco e no Engenho do Ribeiro, e irá para a região do Vale do Jequitinhonha, com apoio de recursos federais da Lei Paulo Gustavo.

O “Jardim de Estrelas” é mais do que um espetáculo; é uma aula de ecopedagogia. Nele, as jardineiras e os ancestrais ensinam sobre a importância das sementes crioulas, da agrofloresta e das práticas agrícolas sem o uso de agrotóxicos. Essas sementes são nativas, não são híbridas, trazem a potência da vida e são mostradas durante o espetáculo. São tradições das tataravós indígenas e das agroflorestas. A artista Amanda, no distrito de São Gonçalo do Rio das Pedras (próximo à cidade do Serro), na comunidade do Engenho, cultiva estas práticas, preservando a biodiversidade e a saúde do solo. O espetáculo conta com Renata Rigueira e Márcia Couto na produção, participação Getúlio Araújo na viola, a costureira famosa de Bom Despacho, Sueli Pereira, nos figurinos. O texto é de autoria das atrizes e está registrado na Biblioteca Nacional.

Em tempos onde o agronegócio frequentemente desconsidera as práticas sustentáveis, iniciativas como essa são fundamentais. Elas demonstram que é possível cultivar a terra respeitando a natureza, sem fogo, sem veneno e com profundo respeito pelos conhecimentos ancestrais. Quando elas perguntam às crianças que assistem ao espetáculo o conceito que têm de florestas na nossa região, algumas respondem, como no caso de Lagoa da Prata, que é canavial; outras, em Bom Despacho, dizem que é pasto ou eucalipto.

Que terra é essa onde cheguei, está seca demais, água da fonte quero beber, mas água boa não tem mais…” assim entoam em uma das canções do teatro.

Após o espetáculo, as crianças ficam eufóricas e correm ao encontro das artistas, para abraçá-las, formando uma avalanche, caindo todos juntos no chão, em um momento de carinho e alegria por estarem participando. Parece que elas saem da “normalidade” da escola, contemplam espaço cênico, têm experiência de espetáculo e da fruição artística, pulando e gritando sob o olhar zeloso das professoras, que darão continuidade às aulas.

No dia 30 de junho, Sueli Santos, produtora cultural residente em Dores do Indaiá, deslocou-se até Abaeté para a apresentação. Ela nos relatou sobre o evento: “O espetáculo, além da graciosidade dos figurinos e da delicadeza do texto, desperta nas crianças um olhar crítico sobre o avanço pernicioso da agricultura predatória, que poderia ser repensada através das agroflorestas. Tocar os sentimentos dos pequenos é uma forma sutil de mostrar a importância da sustentabilidade e dos biomas nos quais estamos inseridos. Percebi que eles acolheram a mensagem das artistas.”

O projeto “Gabirobas do Cerrado” vai além do teatro. Em setembro de 2023, a apresentação “Show Musical Gabirobas do Cerrado – Cirandeiras” encantou o público na Virada Cultural, na Praça da Estação, com canções que homenageiam também o cerrado e sua preservação. As músicas autorais, que podem integrar um álbum em breve, trazem ritmos e letras que evocam a beleza e a resistência do cerrado, educando e sensibilizando o público sobre a importância de preservá-lo.

Origem do grupo

Interessante recordar que esse grupo de arte e cultura nasceu embaixo de um pé de jabuticaba, na rua São José, em Bom Despacho, embalado por modas de viola, MPB, congado, catira, teatro, poesias, literatura, danças e muita cultura popular. Nesse show, há músicas autorais de Alexandra Couto e Amanda Couto. O show conta com a presença do pai das cantoras, o Getúlio Araújo, na viola, da mãe, Márcia Couto nos preparativos e também no palco, com a participação das cantoras Babá Couto, Lelé Couto, além dos músicos maestro Ewerton Cordeiro e Daniel Santos. A circulação do show, com recursos da Lei Paulo Gustavo, começou neste mês de junho e já foi apresentado nas escolas do Mato Seco, no Engenho do Ribeiro, na APAE Bom Despacho, em Lagoa da Prata, Martinho Campos, Abaeté e Dores do Indaiá.

O show dura 50 minutos e apresenta 23 músicas autorais, com ritmos como o ijexá, samba, cururu, entre outros, tocados no violão, viola caipira, pandeiro, acordeón. Ele conta também a temática do cerrado, a sua preservação, as árvores, sua riqueza biodiversa e ensina o alfabeto do cerrado na Língua Brasileira de Sinais (Libras). O repertório inclui músicas com uso de palavras da língua da Tabatinga. Há no espetáculo uma música em homenagem à avó, Dona Margarida: “Maria do amor, no Vilaça, cresceu, a sanfona ao luar, no reinado o louvor a Nossa Senhora”.

Além das atividades musicais e teatrais o grupo também tem produções e atuações com o audiovisual. Em fevereiro foi realizada a mostra “Ocaias de mãos dadas”, produzida com recursos da Lei Paulo Gustavo. A mostra deu visibilidade ao legado de mulheres bom-despachenses que transmitem saberes ancestrais aprendidos entre ocaias (mulheres na língua do Negro da Costa, ou da Tabatinga). Essas mulheres protagonizaram a cena da mostra, que por muitas vezes têm sua existência, trabalhos e sonhos colocados na condição de inferioridade e invisibilidade, mas de mãos dadas com outras ocaias, conseguem forças para transformar suas realidades, gerando qualidade de vida para sua comunidade e sustentabilidade.

Foram exibidos seis curta-metragens concebidos e produzidos por Amanda e Alexandra, com os títulos Abayominas, Feito a quatro mãos, De polvilho e de sonho, Lavadeira de 4 gerações, Semilhas de Oro (gravado na região seca do Peru) e Sá Maria Chiquinha. As exibições ocorreram em escolas públicas de Bom Despacho e na APAE no mês de fevereiro e março. Veja os curtas AQUI.

No entanto, para que projetos como este prosperem, é necessário apoio. A Secretaria de Educação da Prefeitura de Lagoa da Prata já demonstrou interesse em novas apresentações. Em Bom Despacho faltam locais adequados para a realização de eventos artísticos, especialmente em períodos de chuva, nas férias de dezembro e janeiro, quando as apresentações ao ar livre ficam prejudicadas. Há necessidade urgente de um espaço físico para atividades ecopedagógicas. Este espaço deve ser um refúgio rural-urbano, onde jovens possam vivenciar a agrofloresta e aprender sobre a biodiversidade do cerrado. Além disso, há a demanda por um “furgão” que possa transportar o público infantil para essas atividades, proporcionando acessibilidade e ampliando o alcance das ações educativas.

Em um país onde muitos ainda somos “analfabetos do cerrado”, conhecer e valorizar este bioma é essencial. Portanto, a consciência agroecológica não é apenas uma escolha, mas uma necessidade urgente. Projetos como o “Jardim de Estrelas” e “Gabirobas do Cerrado” são faróis que iluminam o caminho para um futuro onde o respeito pela natureza e pelas tradições ancestrais guia nossas ações. Apoiar essas iniciativas é investir em um mundo mais sustentável e consciente, onde a beleza e resistência da gabiroba possam continuar inspirando gerações, por meio da arte.   (Vander André Araújo é advogado, filósofo e escritor / Fotos: Renata Rigueira).

 

One thought on “A resistência e a beleza artística das Gabirobas

  • 14 de julho de 2024 em 12:43
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    Que história linda, que não poderia escapar à sensibilidade e ao talento literário do Vander. Fiquei encantada com toda a história da família tão rica em cultura e consciência. Valorizar as manifestações culturais é fortalecer nossa história, nossa autoestima, nosso pertencimento a um lugar. Bom Despacho, com tanta gente envolvida com a cultura merece esse lugar para dar mais visibilidade aos artistas locais e aos fazedores de artes visitantes. Parabéns, Gabirobas, por defenderem nosso rico bioma através do teatro e das ações no campo. Parabéns, Vander, pelo seu texto mais uma vez preciso e necessário.

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