Não podemos viver cheios de medo uns dos outros

Às vezes, de onde menos esperamos vêm as mais belas surpresas

ROBERTA GONTIJO TEIXEIRA – Há pequenas e simples histórias que acontecem na nossa vida que, por algum motivo, ficam registradas pra sempre.

Um dia desta semana, conversando sobre o incômodo do calor, relembrei uma história que aconteceu comigo há muitos anos, quando me mudei para Belo Horizonte para estudar. 

Eu morava perto da Praça da Liberdade, estudava durante o dia e fazia cursinho à noite. Até hoje, tenho um comportamento bem interiorano, quase simplório. Imagina naquela época, no auge dos meus 18 anos. Todos ficavam imensamente preocupados como eu me viraria na cidade grande, o quanto iam me enganar e os riscos que poderia correr.

Viviam a minha volta, dando conselhos, milhares deles.

Um dos mais frequentes era sobre os riscos que eu corria atravessando sozinha a Praça da Liberdade, todos os dias, à noite, para chegar em casa. Sempre me falavam: cuidado, ali tem muito pivete, eles são perigosos, podem querer te assaltar, te machucar, evite passar perto deles, mude de direção se precisar. 

Eu, como morava a alguns quarteirões da Praça, durante o dia passeava por ela, caminhava, sentava nos bancos, no coreto e ficava admirando o entorno. Quando a fonte estava ligada então, ficava ainda mais encantada com aquela praça linda, pulsante, cheia de vida.

Chegava na Praça quase sempre exausta. Era tudo muito novo para mim. Tanta coisa para aprender, assimilar e conseguir realizar e tudo muito diferente da rotina a qual eu estava acostumada. Fazia longas caminhadas por ali e me sentava, quase sempre, nos bancos perto da fonte. Fico envergonhada de confessar, mas meu sonho era entrar na fonte da Praça da Liberdade e nadar.

Um dia, voltando do cursinho, já bem tarde da noite, estava passando no meio da praça pra chegar em casa. Olhei para o lado e a fonte estava cheia deles, os tão recomendados e temidos “pivetes”.
Para minha surpresa e alegria, nessa noite, havia um bando enorme deles nadando na “minha” fonte! 

Fui logo me explicando e falando com meus botões: “Não pode aproximar”. “Eles são perigosos”. “Podem querer roubar você ou te fazer alguma coisa ruim”. “Mantenha distância”. Acontece que para cada pensamento desse eu dava um passo a mais em direção a eles. Eles pulavam, nadavam, riam e brincavam naquela fonte, de uma forma que eu nunca vou esquecer. Quando me dei conta, já estava lá, sentada, na beira da fonte, com os pezinhos em direção à água, conversando com eles. 

Perguntei sobre suas vidas, contei um pouco da minha e, claro, disse a eles que estava morrendo de inveja, que meu sonho era nadar naquela fonte, como eles estavam fazendo. 

Nesse momento já estavam quase todos bem perto de mim, papeando e brincando ao meu lado. Um deles, após ouvir meus desejos, me disse: “oh dona, pode vim aqui nadá com nóis”. Falei, “ai, não tenho coragem não. Prefiro ficar daqui, vendo vocês”. O outro que estava um pouco mais distante retrucou de lá: “preocupa não, dona, pode entrá, se a polícia vier, nóis te protege”.

Fiquei tão grata e emocionada. Não me arrependo de não ter nadado com eles. Aquela cena, aquela conversa, aquela declaração de gentileza e cuidado, reforçaram uma certeza que sempre tive dentro de mim: o mundo, apesar de tudo, é bom!

Viver esse episódio foi tão especial que o sonho de nadar na fonte ficou suprido, bem como abastecida, por muitos anos, quiçá, até hoje, a certeza de que todos e cada um de nós, apesar de qualquer pesar, tem um lado gentil e maravilhoso.

Vivenciar aquele momento foi muito importante para as etapas seguintes da minha vida e para várias coisas que construí.

Ante todas as recomendações, previsões catastróficas e riscos que eu poderia correr, a vida e os temidos pivetes me apresentaram acolhimento, cuidado e proteção.

Pode parecer ingenuidade, alienação ou qualquer outro nome que queiram dar, mas o fato é que essa história reforçou uma certeza que sempre carreguei vida afora: não podemos julgar o que não conhecemos. Não podemos viver armados, cheios de preconceitos e medo uns dos outros. 

Às vezes, de onde menos esperamos vêm as mais belas surpresas.

(Portal iBOM / Roberta Gontijo Teixeira é bacharel em Direito, ambientalista e servidora pública federal / Foto: Arquivo pessoal)

One thought on “Não podemos viver cheios de medo uns dos outros

  • 30 de outubro de 2023 em 17:18
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    Tenho um nome para essa situação: afeto!

    Partilho dos mesmos sentimentos: medo, memedeia e empatia/afeto! Sejamos cada dia mais acolhimento!!!

    Parabéns!! Sensível!!!

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