Se essa rua fosse minha…

VANDER ANDRÉ – Quem somos, de onde viemos e para onde vamos são questões que afligem a humanidade continuamente. Outra dúvida que nos ocorre, em raros momentos de conscientização e entendimento de si, é onde estamos no momento presente. 

Logradouros, ruas, becos, travessas, praças, avenidas, alamedas. Lugares onde habitamos e se encontram nossas casas, nossos lares e por onde vagam aqueles em situação de vulnerabilidade. 

Algumas ruas têm o privilégio de contar com faixas de pedestres pintadas no solo, dando a preferência ao sujeito caminhante. Quase todas têm nomes, não necessariamente de nascença. São “batizadas” em sessões solenes no plenário da Câmara Municipal. Outras vivem o dilema incessante de identidade, querendo, por exemplo, o retorno aos tempos antigos, voltando a ser do “Céu”. Para completar a busca incessante do nosso GPS interno, são numeradas com um código de endereçamento postal. 

Em Bom Despacho, isso não é diferente. Recentemente, os Correios atualizaram sua base no município e indicaram a cada um de nós, residentes destas plagas, um novo CEP, difícil de memorizar, fazendo-nos esquecer do “sei de cor” 35600… 

Os nomes das ruas e avenidas em Bom Despacho são instigantes. Para se ter uma ideia, na área central, apenas a título de pesquisa, identifiquei registros de santos, papas, padres, vigários, monsenhor, misturados com alferes, coronéis, major, tenente, capitães. 

Nota-se uma preocupação dos nossos antepassados legisladores em homenagear aqueles que, de certa forma, contribuíram para a “formação” da nossa gente, ao longo da história. Seja por meio da disciplina, ordem, segurança das instituições militares, que prometeram garantir o “progresso”. Ou talvez seja por meio da fé, da crença religiosa do povo católico que vivia e vive em abundância e fervor cristão nessa região do cerrado mineiro. 

Estranho é que não identifiquei a presença de nomes de líderes evangélicos ou de religiões de matriz africana, quilombolas ou de congadeiros e reinadeiros na minha pesquisa aérea (rasa, aleatória, pois parece que já houve um projeto para a área do SESC) sobre o mapa no Google. Localizei algumas ruas com nomes de representantes dos povos originários (indígenas: Moçambique, Caiapós, Xavantes…) no bairro saindo da Av. Bandeirantes.

Na terra que se proclama famosa pelo seu agronegócio, não vi homenagem a cooperado, pequeno produtor rural ou fazendeiro da região na identificação das suas ruas. Talvez até possamos encontrar de algum médico que, por “acaso”, também era grande proprietário rural, embora a lembrança da sua vida para a população seja acentuada pela assistência na área da saúde. 

No caminho para o novo Babilônia, encontrei homenagens a países europeus, ainda numa herança eurocêntrica e colonial, além de nomes de pássaros (canários, bem-te-vi, araras e periquitos) e lá no finalzinho, uma rua faz menção aos “heróis PM”. 

No Novo São Vicente, há ruas com nomes de cidades como Araxá, Luz, Londrina, Congonhas, Perdigão, Fortaleza, Florianópolis e muitas outras de Minas e do Brasil estampadas nas placas de identificação. 

E na linha das homenagens póstumas, identifiquei nomes e fiquei curioso para saber quem foram Vivalde Brandão, Carlos Cardoso de Carvalho e mulheres (tão poucas e raras nas denominações) como Ana Ismênia, Maria da Conceição del Duca e Maria Guerra, dentre tantas outras personalidades, que dão nomes a ruas e avenidas no gentrificado São José e em outros bairros na cidade. 

Na cidade do Rio de Janeiro, há iniciativa louvável: desde 2012, o Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da FGV levanta e faz a revisão e identificação de milhares de ruas. O projeto “Placas do Rio” sintetiza o que foi descoberto do nome de cada rua em textos de até uma linha e meia (140 caracteres), que foram acrescentados às placas públicas. 

Já o município mineiro de Rio Pomba inaugurou em maio as Placas Informativas “Vida e Memória”, projeto em parceria com a Universidade Federal de Viçosa, MP e Prefeitura, que instalou placas com tecnologia QR Code, trazendo a história de todos os pontos históricos, em que visitantes e a população conseguem acessar e conhecer melhor a história daquela cidade. 

Os responsáveis por nos representar nesse processo de dar nomes às ruas, avenidas, praças, etc são os vereadores e, em alguns casos e cidades por aí, essas definições ocupam boa parte das suas pautas e projetos analisados, onerando bastante os cofres públicos. Tomara que eles percebam a importância da sua função semântica e contribuam para a formação de cidadãos conscientes dos seus corpos e da memória do lugar que ocupam na sociedade bom-despachense. E se lembrem de que essa rua que passa a ter nome pomposo não é só minha e, desta forma, não é preciso ladrilhar. 

Vander André Araújo é advogado, filósofo e escritor.

3 thoughts on “Se essa rua fosse minha…

  • 1 de agosto de 2023 em 21:50
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    Fiquei encantada com seu texto.
    Quanta informação para nossas crianças, sou professora de História e peço licença para compartilhar sua matéria na escola.
    Hoje mesmo, trabalhei o conteúdo “ruas e avenidas como lugares de memórias”. Levar para eles um pouquinho do conhecimento sobre as ruas de nossa cidade, traz um significado totalmente diferente para a aprendizagem.
    Obrigada!

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    • 2 de agosto de 2023 em 09:09
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      Bom dia! Que satisfação ler seu comentário aqui, ainda mais vindo de uma professora! Muito obrigado pela atenção. Espero que o meu texto contribua para suas ações educacionais e que a cada dia mais e mais leitores possam fazer essa leitura crítica da realidade e da história, propondo melhorias para a sociedade e participando do verdadeiro desenvolvimento. Abraço

      Resposta

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