A história de Dona Fia: uma vida dedicada à costura

 

Dona Fia é a uma das poucas costureiras que ainda trabalha na casa dos fregueses em Bom Despacho/MG, se não for a única que ainda mantém essa rotina. Sua existência se resume ao pedal da máquina, ao terço, à TV ligada nos canais de reza. As suas mãos dormentes pela idade e dedicação às costuras insistem em segurar a frágil agulha que tece histórias.

VANDER ANDRÉ ARAÚJO – Maria Vilma Mota, mais conhecida como Dona Fia Costureira, nasceu em Araújos, na comunidade dos Eleutérios, em 8 de janeiro de 1951. Em 1978, mudou-se para Bom Despacho. Seu marido, Batista, serviu como policial militar em várias cidades, incluindo Papagaios, Martinho Campos (Alberto Isaacson), Medeiros e Igaratinga, além de Bom Despacho.

Segundo sua filha, Cristiane Mota, Dona Fia foi “uma jovem simples que se casou na adolescência e de repente viu seus sonhos desabarem. Um esposo bom moço, cheio de vida, que faleceu cedo, deixando-a com suas filhas. Foi nesse momento difícil que ela encontrou um novo caminho em meio ao nevoeiro. Com suas mãos singelas e cansadas, entre tecidos e tesouras, ela começou uma nova e linda história”.

Há 50 anos, Dona Fia se dedica à costura. Aprendeu o ofício em Araújos e, pela necessidade, aprimorou suas habilidades, costurando para toda a comunidade. Entre seus clientes atuais estão Diva Couto e outras senhoras do centro de Bom Despacho. Mesmo quando uma peça não fica perfeita, ela busca sempre a satisfação de seus clientes.

Ficou viúva aos 37 anos e, durante as longas noites de trabalho solitário, costurava até a madrugada para sustentar sua família. Sobre esse período, Cristiane comenta: “com determinação e humildade, mamãe foi adentrando as casas das famílias bom-despachenses e, como se escrevesse seu próprio livro, viveu e vive um capítulo a cada dia. Nascia também uma amiga presente nos lares de tantas pessoas. Mais que vestir o corpo, a costureira veste a alma e o coração daqueles que têm a sorte de dedicar alguns minutos ao lado da máquina que embala tantos sonhos.

Mãe de três meninas, em uma sociedade que parecia não acreditar que seria possível sobreviver apenas com a renda das costuras, Dona Fia enfrentou dias de muita luta e noites tendo apenas o rádio como companheiro. “No meio da madrugada, eu acordava e o barulho da máquina de costura onde ela trabalhava era como uma canção. Ao final das três horas de sono, lá estava ela de pé para mais um dia de trabalho, como se fosse o seu primeiro”, relembra Cristiane.

Ao retornar para casa, vindo das casas das freguesas, ela trazia no olhar, além do cansaço sem fim, as histórias que tanto acalmavam, nos faziam sorrir, trazia leveza para nosso lar. Era a cliente que queria o mais lindo vestido para sua primeira viagem a Aparecida do Norte, a outra que se imaginava no melhor modelo para o casamento do filho, aqueles que desejavam apenas tê-la como companhia e para compartilhar segredos…”

Ela confeccionou vestidos para várias ocasiões importantes, como a festa de Nossa Senhora do Rosário, e roupas para dançarinos de reinado, destacando-se por sua dedicação e detalhismo.

Minha mãe, Celma, também era uma das clientes de Dona Fia, e desde então se tornaram amigas. Dona Fia passava o dia na nossa casa, na Rua Capivari, cosendo e ajudando a cuidar dos meninos enquanto minha mãe trabalhava. Foram muitas as peças de roupa que ela fez para nós, complementando as que minhas tias também costuravam para a gente na época. Como não me lembrar daquela roupa nova que usei durante a missa de formatura da 4ª série do primário na Santa Casa em 1981?

Camisas para os reinadeiros
Vestidinho feito à mão por Dona Fia para o batizado da filha Cristiane, em julho de 1980

Dona Fia vive na Rua Raquel Paiva há 45 anos. Nenhuma de suas filhas seguiu seus passos na costura. Atualmente há uma escassez de costureiras em Bom Despacho. Quando suas máquinas de costura precisam de conserto, ela chama Gilmar e Alberto Gilmax, que têm uma oficina perto da VDM.

Ela prefere costurar para homens, que são menos exigentes e precisam de roupas com maior frequência. Um de seus maiores orgulhos é fazer camisas para os dançarinos de reinado. Acerca disso, a filha Cristiane comenta: “Quando estávamos próximos da festa de Nossa Senhora do Rosário, os dias pareciam ter 20 horas de luz! As mãos grossas e dormentes da mamãe acalentavam agulhas e linhas que pareciam desaparecer entre os dedos e daí surgiam as mais perfeitas criações. Ela sempre foi detalhista e até hoje faz da sua profissão algo admirável e motivo de orgulho para todos nós”.

Sobre os tecidos, Dona Fia comenta que as lojas da cidade oferecem poucas opções, mas ela sempre faz o melhor possível com os materiais disponíveis, mesmo que o tecido comprado pela cliente não seja o de sua preferência. Ela cita o prazer de ainda comprar nas lojas Liderança, Armarinho Paula, Sô Nenzico e Ideal.

Uma das roupas mais desafiadoras que já fez foi para o Dr. Azul: uma túnica branca de policial cheia de bolsos. Ao ver a roupa pronta, o dentista brincou: “onde vou encontrar tanto dinheiro para colocar nesses bolsos, Dona Fiinha?” Também confeccionou um vestido branco para Diva Couto, que foi muito elogiado em Lido, Paris, em 2010. Ela costura até roupas para bonecas e cachorrinhos, além de peças, como cuecas, para o falecido pai de Diva. Recentemente, fez um belo vestido para sua filha que participaria de uma cerimônia em Divinópolis de formatura da Polícia Militar.

Curiosamente, Dona Fia nunca fez vestidos de noiva; os vestidos de suas três filhas foram alugados. No entanto, fez vestidos de batizado para bebês, conhecidos como mandriões, usados por seus netos. Ela nunca fez roupas para padres, sabendo que suas batinas vêm de longe.

Dona Fia é a uma das poucas costureiras que ainda trabalha na casa dos fregueses em Bom Despacho, se não for a única que ainda mantém essa rotina, pois muitas se aposentaram ou faleceram. Não há uma associação de costureiras na cidade. Ela acredita que há muita competitividade entre as costureiras, sempre comparando quem faz um trabalho melhor, o que chega a ser engraçado.

Com apenas duas máquinas em casa, Dona Fia prefere as máquinas tradicionais às industriais, pois acha o ritmo das máquinas industriais muito rápido e ela se considera lenta, perfeccionista. Cliente fiel do Armarinho Paula, Dona Fia compra todos os seus aviamentos lá. Na casa de Diva, onde também costura, ainda existe uma máquina de costura Singer, datada de antes de 1940, que foi da sua avó e funciona até hoje e Dona Fia ainda a utiliza vez ou outra.

Atualmente, Dona Fia aguarda uma cirurgia de catarata pelo SUS, mas continua trabalhando com a ajuda de óculos. Nunca ficou rica costurando, mas sempre teve o suficiente para viver. Não contribuiu para a previdência e portanto não se aposentou. Priorizou a educação das filhas, e se orgulha em dizer que todas elas têm curso superior. Dona Fia vive sozinha, contando com o apoio de Deus e da filha Hortência, que mora ao lado. Além de costurar, ela faz lembranças e enfeites, incluindo um presépio famoso que monta todo ano em sua casa.

A cliente Diva Couto está preparando uma colcha dos sonhos para Dona Fia, com fotos de vários momentos de sua vida, incluindo uma montagem do seu casamento. Como não houve fotógrafo disponível no dia de seu casamento em Perdigão, a montagem foi feita com fotos do casamento da Rainha Elizabeth e do Príncipe Philip. A colcha ficará com Cristiane, que aprecia essas recordações.

Para finalizar, pedi a Cristiane Mota que falasse um pouco sobre sua mãe. Ela escreveu: “Desde que eu nasci, a vida de minha amada mãe é ‘entrelinhas’. Seu jeito de amar traz sempre algo que vai além das palavras. Um amor em se doar ao outro, em servir, dizer sim, fazer sem esperar nada em troca. Sua existência se resume ao pedal da máquina, ao terço, à TV ligada nos canais de reza, a uma viagem a Aparecida do Norte. As suas mãos dormentes pela idade e dedicação às costuras insistem em segurar a frágil agulha que tece histórias. Linhas que costuram o tempo e fazem dela uma colcha de retalhos que traz um pouco de cada um. Acolhe, aquece, protege, enfeita. Há uma frase de Cora Coralina que gosto muito pela proximidade com minha Mãe e seus ensinamentos: ‘Saber viver é a grande sabedoria. Saber viver é dar maior dignidade ao trabalho. Fazer bem feito tudo que houver de ser feito’”.  (Vander André Araújo é advogado, filósofo e escritor / Fotos pelo autor)

 

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