A Luz do Engenho, medo de assombração e outros casos
FERNANDO CABRAL – Nas noites quentes de verão, a meninada se reunia sob a luz dos postes das ruas de Bom Despacho. Falar luz dos postes é quase exagero. Poucas ruas tinham postes. As que tinham, a luz era tão fraquinha que, na lua cheia, a luz das lâmpadas era ofuscada pelo clarão selenita.
O apelido das lâmpadas era tomate. É fácil saber por quê. Olhando as lâmpadas a gente quase não via luz. O que saia delas era um discreto brilho avermelhado. A eletricidade era insuficiente para incandescer o filamento e gerar luz.
Iluminação mesmo, só de madrugada. Era quando todas as casas estavam dormindo, o cinema já tinha desligado seus projetores, as vendas e botecos estavam fechadas. Aí a energia chegava às lâmpadas das ruas. Já servia. Facilitava a volta para casa dos poucos bêbados, boêmios e notívagos que ainda perambulavam.
Sobre cada lâmpada havia um prato frisado. Era para não deixar a luz parca escapar para o espaço. Os maldosos, porém, diziam que era para o brilho de tanta luz não ofuscar as estrelas e não matar a lua de inveja.
Mas, divago.
Com luz ou sem luz, no verão a meninada jogava queimada, brincava de ura, rouba bandeira, bandido e mocinho, finca, bente altas. Ou andava de carrinho de rolimã e fazia outras coisas que ninguém mais sabe o que é, como era, o que significava.
Em maio o inverno chegava para valer. Fazia frio. Muito frio! Ele deixava nas crianças marcas visíveis. Os meninos ganhavam boqueira, frieira, dedos rachados e nariz correndo. Do anoitecer ao amanhecer, todo mundo tremia e batia queixo. As japonas saiam dos guarda-roupas.
Mas não se tremia só de frio. Tremia-se também de medo. Explico por quê.
No inverno a iluminação das ruas piorava. Se é que era possível piorar. Quando passava a época das chuvas o Rio Lambari baixava. Aí a usina diminuía a água nas turbinas e as luzes da rua bruxuleavam e costumavam se apagar. Quando acesas, passam vergonha perto da luz das lamparinas que vazava das portas e janelas das residências. Mas os meninos de outrora não temiam frio, escuridão, ou assombração.
Opa! Não temer assombração já é demais! Assombração exige deferência. E assombração era o que não faltava em Bom Despacho de antanho. Havia casa mal assombrada; havia mula sem cabeça; havia alma penada. Quem podia não ter medo destas coisas?
Portanto, medo, havia. Mas que menino admite sentir medo? Que menino quer ficar em casa, sabendo que os amigos estão lá fora brincando? Com frio e tudo, lá estavam todos na rua penumbrosa. Para frio, acendia-se uma fogueira e todos sentavam em um tronco qualquer caído na rua. Não podiam sentar muito perto para não fazer xixi na cama.
As brincadeiras de inverno eram mais calmas do que as de verão: passar anel, corre cotia, chicotinho queimado. Mas quase toda noite terminava com contação de caso. Mas, de caso em caso, o assunto virava assombração.
A escuridão virava esconderijo de monstros. Mas, não havia como evitar: sempre aparecia alguém para lembrar da última aparição. Podia ser no cemitério, na casa abandonada ou numa estrada solitária de um lugar ermo.
Aí até o frio sumia. Num tronco em que cabiam cinco meninos sentados, de repente havia quinze encarapitados. Todo mundo espremidinho. Ninguém queria ficar na ponta do tronco. Vai que a assombração aparecia por ali? Ela ia puxar o pé de quem estava na ponta!
Porém, menino criado nas ruas de Bom Despacho daquela época jamais confessava medo. Aí, cada valentão contava um caso mais assombrado. E de assombração em assombração, o ar ficava pesado. Qualquer barulho num quintal próximo já dava arrepios.
Quanto mais casos, mais os meninos se espremiam no banco de tronco. A desculpa era o frio da rua, mas o frio que a japona e fogueira não combatiam era o que subia pela espinha e dava calafrios. Tinha a casa que era apedrejada à noite. Tinha a casa onde o barulho de corrente ia até de madrugada. Tinha a casa dos gemidos e lamentos. E tinha o caso da Luz do Engenho, a Mãe do Ouro.
A Luz do Engenho era uma alma penada. Ela vagava entre o Córrego do Raposo e a ponte de Rio São Francisco. Percorrer este trecho à noite era temeridade e prova de coragem. A pé, no lombo do cavalo, no carro de boi ou num velho carro Ford, não importa, havia sempre o perigo de a Luz aparecer.
Mesmo quem nunca a vira tremia de medo só de ouvir falar nela.
Ela aparecia e acompanhava a pessoa estrada afora. Às vezes chegava perto, mas quase sempre seguia mais ao longe. Os que a viram mais de perto, contam que ela também urrava, bafejava e fazia barulho de ventania brava. Os animais se assustavam e refugavam. Uns empacavam.
Dizem que quem fizesse amizade com ela poderia achar a mina de ouro que só ela sabia onde estava. Mas o certo é que ninguém ousava perguntar pelo tesouro. Ou, pelo menos, ninguém sobreviveu para contar que resposta obteve.
Certo dia, um maludo das bandas da Ressaca resolveu desafiar a Luz. Foi para a encruzilhada perto da Lagoa da Gurita e gritou para ela aparecer. Em vão, seus amigos tentaram demovê-lo. Mas, maludo que é maludo, não se assusta. Ele sentou-se numa pedra, acendeu um pito e esperou.
Seus amigos, que o haviam acompanhado até ali, foram se lembrando de obrigações que tinham que atender e tomaram rapidamente o rumo de casa. Foram juntos, porque não eram malucos de andar sozinhos à noite no território da Luz do Engenho. O maludo continuou sentado ali. Era pito na mão, desafio na mente, coragem no coração.
Na manhã seguinte os amigos o encontraram desmaiado num trilho perto da fazenda velha da Ressaca. Sujo, cabelo e barba chamuscados, exalando catinga de estrume humano. Mas, o que aconteceu naquela noite, ninguém sabe. Ele nunca contou. O que se sabe é que nunca mais saiu de casa à noite. Nunca mais falou na Mãe do Ouro.
Assim ficou provado que ninguém desafiava a Luz do Engenho em vão.
Depois da história da Luz do Engenho, era hora de ir para casa. Mas quem tinha coragem de abandonar a proteção do grupo e caminhar por aquelas ruas escuras na noite fria? E se a Luz do Engenho aparecesse?
Foi quando a bruxuleante luz de um poste próximo deu um surto de brilho. Pode ser que o Zé Anacleto tivesse errado a regulagem no castelinho. Pode ser que o projetor do cinema tivesse sido desligado. O certo é que a lâmpada piscou, brilhou forte e apagou de vez.
Um dos meninos gritou, desesperado: “a Luz do Engenho!”.
Ó pernas, para que te quero? Num piscar de olhos, estavam todos em casa, afundados nos cobertores, cabeça coberta e tremendo. De frio, claro; não de medo. (Portal iBOM / Fernando Cabral é licenciado em Ciências Biológicas, advogado, auditor federal e ex-prefeito de Bom Despacho / Fotos indicadas na legenda).