Maria Lúcia, uma curitibana bom-despachense
MARIA CELESTE DE MORAIS – Maria Lúcia nasceu na Rua Lambari, em uma casa simples que ainda resiste. Filha da bom-despachense Maria Madeira Gontijo, a Lia, uma jovem linda e brava que aportou no Rio de Janeiro nos anos trinta do século passado. Aprovada em um concurso para a Secretaria da Fazenda, Lia viajou sozinha, morou em pensionatos e casou-se com um colega de trabalho.
Voltou a Bom Despacho para dar à luz sua primeira filha, Maria Lúcia. Desembarcou na Estação Ferroviária com um largo sorriso e enorme barriga. Toda a família a esperava e houve um entra e sai festivo na casinha da rua Lambari, onde dias depois a menina nasceu acolhida pelas mãos da parteira Dona Alma e sob os cuidados da avó Hermengarda.
Foi a última vez que Lia, a mãe, esteve em Bom Despacho. A morte, estúpida e inexplicável, colheu-a menos de quatro anos depois. Deixou duas filhas pequenas, que foram criadas pela segunda esposa de Fernando, Ecéa – essa a verdadeira mãe que Maria Lúcia conheceu e para sempre admirou.
Tanto desvelo e carinho só as “boas dastras” podem oferecer e foi assim amorosamente envolvida, que em agosto de 1954, logo após completar 6 anos, enquanto a madastra amamentava o irmãozinho recém-chegado e o rádio tocava músicas românticas, um hiato se estabeleceu: uma chamada urgente anunciava o suicídio do presidente Getúlio Vargas.
Maria Lúcia foi chamada por Ecéa, que lhe deu uma estranha ordem: vá à sede da Secretaria (Fazenda) e diga a seu pai que Getúlio suicidou. A menina ficou perplexa, não pela gravidade da notícia, mas pelo mistério que as ditas palavras encerravam. Ousou perguntar: “quem é o Getúlio?” A resposta breve: “depois lhe explico!” Outra intervenção da criança: “O que é suicidou?” O inusitado diálogo teve um rápido desfecho, com a mãe prometendo explicar tudo direitinho depois.
Os caminhos que levavam à sede da Secretaria, em torno da qual erguia-se a pequena vila de casas idênticas onde moravam os empregados, eram formados por atalhos cercados pela erva úmida de uma chuvinha recente. Maria Lúcia percorreu a trilha dizendo a cada passo, para não esquecer a mensagem: “Getúlio suicidou, Getúlio suicidou…” e assim chegou com os tamancos molhados à porta da repartição onde o pai trabalhava. Cercado por mesas repletas de máquinas de escrever e de somar, com um lápis suspenso na orelha, Fernando revelou surpresa nos olhos azuis redondos, ao ver a filha se aproximar.
Maria Lúcia tinha pressa de desincumbir-se, de livrar-se das palavras misteriosas e declarou-as em alto e bom som:
– Pai, Getúlio suicidou!
Por um breve momento pairou no ar o impacto de sua mensagem. Paralisação total. Todos os olhares se voltaram para a menina. Nenhuma máquina fez mais nem tic nem tac. Em câmera lenta um documento voltou à pilha, um arquivo se fechou, um lápis pendeu… Maria Lúcia experimentou uma sensação de importância que até então desconhecia. O pai aproximou-se devagar e perguntou atônito o que era, de onde ela ouvira aquilo. A pequena informou que a mãe escutara no rádio.
Toda a repartição, que acompanhara a curta conversa, saiu do susto inicial. Gavetas se fecharam, cortinas se cerraram, todos se mexiam e um burburinho se fez no recinto. A Secretaria se preparava para o luto que se seguiria ao suicídio de Getúlio.
Protagonista desse momento especial da nação, repórter responsável, Maria Lúcia seguiu e nunca esqueceu sua terra natal. Quando aqui aparece, cumpre uma extensa via-sacra para visitar parentes e amigos de quem nunca se desligou e permanece em contato via Whatsapp. Ama Bom Despacho, quer sempre rever cada pedacinho de sua história.
Forte como as mulheres da família, enfrenta cada desafio com a certeza de que sempre haverá um amanhã, e que ele poderá ser sempre melhor. Morou no Rio, depois em Belo Horizonte (trabalhou na Escola Nossa Senhora d´Assumpção) e radicou-se finalmente em Curitiba, onde reside o seu núcleo familiar mais próximo. De lá, permanece atenta à vida bom-despachense.
Ofereço a essa prima valorosa e guerreira a minha homenagem, extensiva a todas as mulheres destemidas da nossa Bom Despacho, longe ou próximas. Força e resistência a essa galera vitoriosa! (Portal iBOM / Maria Celeste de Morais é professora aposentada e escritora / Foto: Arquivo Maria Lúcia).