Boa noite, Irene Morais, vó e mãe duas vezes
LÚCIO EMÍLIO JÚNIOR – No dia 3 de maio que passou, minha avó, Irene Madeira Morais, faria aniversário. Em vida, ela foi Filha de Maria, reunindo-se com um grupo de mulheres devotas de Nossa Senhora. E foi, também, mãe de Maria (Maria Celeste, minha mãe). Irene já seria trisavó de meu neto Davi Dias Campos.
Vovô era descendente da família Gontijo. Um dos supostos fundadores de Moema chamava-se Manoel da Costa Gontijo (supostos, porque também há a hipótese de que quem fundou Moema foram negros alforriados, que ali chegaram antes dos brancos).
Vovó gostava de contar os casos do tempo em que vivia em “Doce”. Era uma fazenda sem luz, suponho eu, iluminada pelo mitológico lampião de gás eternizado por Inezita Barroso, que tanta saudade nos traz.
Ela uma vez cochilou à tarde, todos saíram e ela acordou em pleno breu, em plena escuridão da casa, misturando-se com a noite. Eu sempre achei essa imagem muito poética. E ela gostava de poesia também, bem como foi a mais fiel admiradora de meus textos. Irene gostava de recitar o poema As Pombas, de Raimundo Correia:
Vai-se a primeira pomba despertada…
Vai-se outra mais… mais outra… enfim dezenas
Das pombas vão-se dos pombais, apenas
Raia sanguínea e fresca a madrugada.E à tarde, quando a rígida nortada
Sopra, aos pombais, de novo elas, serenas,
Ruflando as asas, sacudindo as penas,
Voltam todas em bando e em revoada…Também dos corações onde abotoam
Os sonhos, um a um, céleres voam,
Como voam as pombas dos pombais;No azul da adolescência as asas soltam,
Fogem… Mas aos pombais as pombas voltam,
E eles aos corações não voltam mais.
Essa imagem dela misturando-se às sombras foi recorrente em seus sonhos a vida inteira. Curiosamente, um dia a minha tia Marlene viu a sombra da mãe na parede e resolveu pintá-la ali mesmo. Quando a casa foi demolida, curiosamente, esse pedaço da parede permaneceu.
Quando Irene nasceu, a cidade onde ela vivia chamava-se “São Pedro do Doce”, ou simplesmente, “Doce”. É muito curioso esse nome, pois “doce” era algo que Irene, de fato, era. E tinha um nome específico a região de onde ela vinha, algo como “Lagoa do Jacaré”. Hoje o povoado virou a cidade de Moema.
O poema do Frei José de Santa Rita Durão (1722) conta o amor da indígena Paraguaçu que, ao ver sua irmã ir embora para a França com o seu amor, o português Diogo Caramuru, afogou-se tentando segui-los. Podemos ler em O Afogamento de Moema:
XLIII
Perde o lume dos olhos, pasma e trema,
Pálida a cor, o aspecto moribundo,
Com mão já sem vigor, soltando o leme,
Entre as salsas escumas desce ao fundo.
Mas na onda do mar, que irado freme,
Tornando a aparecer desde o profundo:
“Ah! Diogo cruel!” disse com mágoa,
E, sem mais vista ser, sorveu-se n’água.
Vovó Irene era um ser poético. Na infância, eu a associava com Dona Benta na adaptação que a Globo fez do Sítio do Picapau Amarelo e a mãe de meu pai, vovó Sílvia, com a tia Anastácia. Posteriormente, eu notei que a associação era também com a encantadora atriz Zilka Salaberry. E não só eu que pensei nisso.
Dilma Moraes comentou em eu livro Laços de Amor e Chá Verde: “Irene, além de lembrar a atriz Ingrid Bergman, possuía um timbre vocal especial e cativante.” Ela cantava uma versão de Here, There and Everywhere de Ronnie Von. Ela divertia os ouvintes confundindo-se com a letra e cantando “o lado branco desse doce olhar”. A versão, chamada, Amor e Nada Mais, me faz pensar muito nela também:
Sou rico pra valer
Tenho mais que um rei pois tenho o seu amor
Em um lago manso desse doce olhar
Tem um marfim dessas mãos
Que fazem gestos de amor para mim
E ao me deixar não falam da dor do adeus
E, apesar dos gestos de amor, das suas mãos de marfim, precisamos falar da dor do adeus. Um dia minha prima Joesse recitou maravilhosamente para vovó Irene o poema de Manuel Bandeira sobre Irene no Céu:
Irene preta
Irene boa
Irene sempre de bom humor.
Imagino Irene entrando céu: “licença meu branco!”
E São Pedro bonachão: “entra, Irene, você não precisa pedir licença!”
E Irene, a que sempre temia desaparecer na noite, vive ainda nas canções, livros, poemas e crônicas. Não vamos deixar sua sombra desaparecer. Ou melhor do que sombra: mantemos vivo seu ser poético.(Portal iBOM / Lúcio Emílio Júnior é filósofo, professor e escritor / Foto do alto: Irene em 1956 / Arquivo da família).
Oi! Esse desenho sombreado ficou na parede do lote da casa ainda hoje? A casa da Cel. Tininho?
Não, Marlene o retirou e guardou. Abraços