Padre Jayme Lopes Cançado e sua obra eterna: a última vez

 

LÚCIO EMÍLIO JÚNIOR – Agora em maio é aniversário da morte de Padre Jayme Lopes Cançado. Éramos parentes distantes, mas eu o conheci bem de longe, de passagem. Comprei uma caixa com as obras literárias dele para minha mãe.

Nela, gostei muito de ler, na novela Ângela, o Encontro não Marcado, o ensinamento profético: o século será o da libertação das nações, das mulheres e dos trabalhadores. Século que ainda precisamos ver acontecer. Sobre Jayme, dou a palavra à minha mãe:

“- Fique, essa pode ser a última vez.

– Não, preciso pegar o horário do Banco. Falar com a minha gerente. Diga que deixei um abraço.

Na sala da Casa Paroquial, aguardava encontrar o padre Jayme, sabendo essa que poderia ser a última chance. Fui embora e restou a eternidade. Nas retrospectivas, vi-o à porta da casa, após a saída do enterro do irmão Romeu. Cheguei atrasada, a tempo apenas de testemunhar o seu desamparo. Ele estava sozinho e arrasado, sentado à beira da amurada, infinitamente ferido. Superou e prosseguiu. Era Madeira pelo lado materno, obstinado e resiliente.

Lembrei o professor bem-humorado, trocadilhista, sempre com um chiste ou ditado popular apropriado à situação. O padre comprometido com o social, chamado um dia ao DOPS. Nunca se acovardou. Ao contrário, buscou uma luta alternativa: despertar jovens para os valores humanitários de solidariedade ao próximo. O “Roda Viva” formou uma ciranda que, de mãos dadas, atravessou o tempo e cujos elos permanecem unidos.

O padre Jayme comerciante, detalhando calmamente as vantagens artísticas da pequena imagem da Mãe Eterna que lhe comprei, além do presépio que passei adiante em um Natal triste… Até o livrinho de “reza brava” que também desapareceu. Além de bom vendedor, ele oferecia a conversa divertida, a pitadinha política (perguntou-me, um belo dia, o que eu achara da nomeação de Meirelles para Ministro da Economia de Lula….embatuquei.)

Ouvi do Padre Vicente Rodrigues, em uma aula no Colégio Miguel Gontijo, que o “Jayme depois de 64 não foi mais o mesmo”. Uma colega me cutucou perguntando o que houvera em 64. Respondi: “a Revolução…(santa inocência!)

Na leitura da biografia redigida por Juliano é que soube do manifesto subscrito contra o regime militar e da frase curta acrescida à oração da Eucaristia: “Que este vinho nos dê força e fé para resolvermos nossos problemas”. O vice-presidente José Maria Alkmin assistia à missa e retirou-se. Começaram os problemas para o padre que recebeu proteção do colega Vicente Rodrigues de Souza e do coronel José Geraldo de Oliveira. Mais tarde, ao criar o Movimento Roda Viva, Padre Jayme inspirou-se em Chico Buarque de Holanda e sua música que lembra uma roda voraz.

Recorda Juliano que nas atividades recreativas do Roda Viva o grupo entoava: ‘Para ir ao Céu’ entre rimas e gargalhadas. A melhor de todas: ‘Para ir ao Céu não precisava de andaime, bastava seguir o nosso amigo Padre Jayme’.

Naves espaciais. Terremotos. Um bêbado que decide parar de beber e conhecer “a outra banda do rio”. O desespero de recuperar-se de um terremoto da alma. De sentir-se tonto de felicidade por vencer cada dia. O peixe treinado para viver fora d´água e escorrega nas pisadas molhadas do patrão, cai na pinguela e morre afogado. O realismo fantástico e a ironia machadiana presente na obra literária do Padre Jayme.
Em um livreto que antes passara batido “por que casar?” encontrei uma biografia magnífica do Padre Jayme, de autoria do Juliano Azevedo. Essa leitura preencheu muitas lacunas. Não sabia que o horário de verão fora instituído pelo Presidente Getúlio Vargas em um remoto outubro de 1931, ano em que nasceu o menino Jayme. Nem que o monumento ao Cristo Redentor, no Rio de Janeiro, inaugurado no mesmo ano, seria mais tarde cenário das inúmeras excursões organizadas pelo Padre, a caminho de Cabo Frio. E que Luís Padeiro, seu pai fosse o criador da “Rosca da Rainha”, legado imaterial que Bom Despacho ainda não reivindicou. Lembrei as tardes de sol em que, com a minha dindinha Angélica, comprávamos os doces da Clarinha, na Avenida das Palmeiras. Não saíamos sem antes degustar o café com biscoitos e uma boa prosa…

Revisitei o paraninfo da formatura do curso normal, sutilmente conduzindo, feito um padrinho responsável, a organização do evento, os hinos, a escolha da data. E comendo um churrasquinho com a turma, não nos perdoando sutilmente a falha: “Por que vocês não colocam carne nesse sal”?

Em um distante dia de verão, celebrou o meu casamento religioso, quase com pompa e circunstância. Não assistiu ao fim da quimera que o tempo e o imponderável derreteram, inexoravelmente.

Seus programas na Difusora faziam festivos nosso almoço cotidiano. Quando a comida fumegava nos pratos, a música de abertura pedia que as famílias fossem abençoadas, “a minha também!” A voz do Padre Jayme infundia paz e gratidão.

Na doença de minha mãe foi uma presença reconfortante. Ela se confessava; ele, sem pressa, incutia-lhe forças para enfrentar a morte iminente. A amizade, o parentesco, uniam-nos em uma conversa amena e perene. A dor, parece que se diluía naquela tessitura… tudo se clareava e o caminhar para o fim fazia-se mais suave.

Um dia meu filho me mostrou os livrinhos do padre Jayme. Corri os olhos pelos títulos, meio cética e sentenciei: parece “pregação”. Não é piegas? Excessivamente juvenil? Ele respondeu que eram atemporais, mas que registravam uma época de transformações, de muitas gírias já esquecidas, de muitas inquietações e do despertar do pensamento crítico, que tão bem Padre Jayme conseguiu induzir na juventude dos anos rebeldes.

O prefácio de Luiza Garbazza em “Era Uma Vez um Menino” toca com maestria no que é o cerne da literatura perpassada por toques filosóficos, gotas de sabedoria que nos ensinam a “superar os desafios sem desanimar e ver que a vida está sempre em construção. Somos apenas um esboço de vida, seres inacabados; a vida se constrói a cada instante… é preciso conservar o entusiasmo, o calor da juventude, a alegria da alma.”

Em “O Último Cigarro” um dilema; lamentar que o cigarro seja o último ou comemorar que ainda resta um?”
O pleito ao congadeiro, que faz cultura, é um testemunho – “azar do azar se o congadeiro dança” – e um incentivo: “dance, congadeiro”. “Na rua e na praça. Cá dentro de nós, dançamos também.”

Chegando o segundo dia de maio, não há como deixar de lembrar esses dois anos sem o padre Jayme, esse lutador que escolheu trabalhar com os jovens, criaturas que os educadores consideravam “difíceis”. Que neles despertou o espírito da boa luta, do bom combate. O show não acabou. A estrelinha brilha, a palavra frutificou. Padre Jayme para sempre presente entre nós”.   (Portal iBOM / Lúcio Emílio Júnior é filósofo, professor e escritor / Fotos: Arquivo).

 

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