Vander André: um apelo em favor da empatia pelo outro
Entrevista: Vander André Araújo
O livro “Sobre Mim uma Sentença” representa um apelo, um pedido para que, ao julgarmos alguém antecipadamente, ao atribuirmos um veredito (ou um despacho) sobre o outro, possamos desenvolver a empatia. Precisamos estar abertos ao novo, ao respeito à diversidade e, acima de tudo, realizar um exercício de autoanálise.
Neste sábado, 2 de março, o escritor e colunista Vander André Araújo, 52 anos, lança em Bom Despacho o seu novo livro “Sobre Mim uma Sentença” (Ed. Ramalhete, 2024). O lançamento será feito no Café com Prosa, que fica na rotatória da Norte-Sul, de 9 às 12 horas, em evento aberto ao público.
Sobre Mim uma Sentença – uma obra de ficção – é o terceiro livro publicado por Vander André, que mantém coluna regular no Jornal de Negócios e no portal iBOM. Acesse AQUI os artigos de Vander André e outros colunistas no site. “Ambientado inicialmente na região da Tabatinga, em Bom Despacho/MG), um território quilombola, o enredo começa com a vida de um negro, nascido nesse contexto histórico rico e complexo, ao mesmo tempo de muitas carências”, diz o autor sobre a obra.
Nessa entrevista exclusiva ao editor do iBOM, Alexandre Borges, Vander explica sua relação com a Tabatinga: “até 1986, quando completei 15 anos, eu morava em um barracão nos fundos da Rua Capivari, bem próximo da Cruz do Monte, convivendo com a realidade e cultura da comunidade daquele quilombo”.
No livro, Vander André aborda o racismo, “um tipo de preconceito que persiste e afeta nossa sociedade de maneira prejudicial”. O autor também ressalta a importância da diversidade linguística e cultural em Bom Despacho. “É fundamental não apenas reconhecer a língua da Tabatinga como patrimônio cultural, mas também estudá-la, preservá-la e valorizá-la no dia a dia. Além disso, é relevante examinar a influência de outros colonos em nossa região, como os alemães que chegaram há quase cem anos”, diz ele na entrevista.
Vander André fala também da sua motivação para escrever no Jornal de Negócios sobre a cultura, a história e as famílias bom-despachenses. “Após mais de 30 anos longe da minha cidade natal, senti enorme necessidade de pesquisar sua gente, sua memória, sua cultura”. Para ele, manter uma coluna no jornal representa “a possibilidade de reencontrar velhos amigos, conhecidos, seus pais, avós, seja por meio de fotografias, vídeos, e descobrir quanto eles contribuíram para nossa história, para a construção de nossa identidade”.
Veja a entrevista a seguir.
iBOM – Neste seu terceiro livro, o personagem central é um negro da Tabatinga. Ele foi inspirado em alguém? Como surgiu a ideia do novo livro?
Vander André – Durante grande parte da minha infância e adolescência, morei na Rua do Capivari, bem próximo da Cruz do Monte, e fiz grandes amizades com os moradores da Tabatinga, alguns negros, com quem convivia. Além disso, o caminho para a roça dos meus pais, na Prata, fosse transitando na antiga charrete ou no jipe, era pela rua da Tabatinga, com seus casebres e sua gente tão peculiar. Não posso afirmar que me inspirei em alguém especificamente, mas guardo grandes lembranças desse período e dos “camoninhos”, parceiros de lutas em tempos de dificuldade econômica e social, que de alguma forma se encontram retratados nesse romance, que é pura ficção. Vale lembrar que esse personagem central passa por uma transformação ao longo do livro.
A ideia do novo livro surgiu durante a conclusão da minha graduação em Filosofia, quando me deparei com questões contemporâneas como o racismo e preconceito de gênero. Meu trabalho de conclusão de curso partiu da teoria da filosofia do horror e me envolveu em um universo de pesquisa sobre vários tipos de preconceitos caracterizados pelo nojo, horror ou repugnância em relação ao outro, quando me espantei com o crescente número de casos de transfobia no Brasil.
iBOM – O título da obra remete a quê? Qual o significado dele?
Vander André – Talvez uma das tarefas mais árduas para um autor seja a de nomear sua obra. Por outro lado, percebo que pais e mães se deleitam em escolher o nome de seus filhos em chás de revelação, decorados com tons de rosa ou azul. Eu enfrentei uma grande dificuldade para chegar a um título adequado. Vários outros surgiram, até que cheguei a um ponto na história em que refleti e pensei, puxa vida, essa pessoa foi sentenciada pelas pessoas no meio em que vive. Julgada, condenada à exclusão, à marginalização, segregada por causa de suas escolhas de vida, que, aos olhos de alguns, “doutores da lei dos homens” eram inconcebíveis e erradas. Recebeu, assim, sua sentença, um despacho que poderia ser bom ou mau, mas que, de qualquer forma, foi proferido por várias pessoas, inclusive seus próprios pais. Por outro lado, escrever uma sentença sobre alguém seria como realizar uma análise sintática, atribuindo uma ação a esse sujeito, ciente de que dessa maneira ele acaba sendo rotulado com tantos predicados, o que pode prejudicá-lo.
iBOM – Você conviveu com a realidade e a cultura da Tabatinga? Quando? Isso te influenciou? Como?
Vander André – Até 1986, quando completei 15 anos, eu morava em um barracão nos fundos da Rua Capivari, em Bom Despacho, bem próximo da Cruz do Monte, convivendo com a realidade e cultura da comunidade daquele quilombo. São amigos, antigos conhecidos, pessoas com quem convivia e com as quais meus pais também se relacionavam ao irem para a fazenda, passando pela avenida que hoje se chama Ana Rosa. Até hoje, ainda passo por lá, seja vindo da capital pela Estrada do Pica-pau ou indo para a fazenda, atravessando o bairro até o Lixão. Além disso, conheci o trabalho de pesquisa linguística da professora Sônia Queiroz em seu livro “Pé Preto no Barro Branco” e me diverti ao revisitar alguns significados de palavras da língua dos negros da Costa, que fazem parte do nosso dia a dia, no dicionário de Benício Cabral e Comodoro.
iBOM – Na divulgação do livro, você afirma que ele “aborda temas profundos e atuais que ecoam não apenas localmente, mas em todo o país”. Quais são esses temas, especialmente na ótica local?
Vander André – São diversos temas abordados no livro, entre eles destaco o racismo, um tipo de preconceito que persiste e afeta nossa sociedade de maneira prejudicial. Além disso, é importante ressaltar o preconceito de gênero, considerando que vivemos em um país onde ocorrem muitos casos de violência contra pessoas LGBTQIA+, sendo um dos mais altos índices de assassinatos desse grupo no mundo. Outro tema explorado no livro é o multilinguismo. Nesse contexto, focalizo especialmente em nossa cidade: é fundamental não apenas reconhecer a língua da Tabatinga como patrimônio cultural, mas também estudá-la, preservá-la e valorizá-la no dia a dia. Além disso, é relevante examinar a influência de outros colonos em nossa região, como os alemães que chegaram há quase cem anos, conforme estudado e descrito pela Professora Maria Antônia Kohnert Gontijo Teixeira em seu livro “Kolonie” (2022).
iBOM – Em sua coluna no Jornal de Negócios você tem encantado muita gente com textos que resgatam e valorizam a cultura e a história do povo bom-despachense. O que te motiva?
Vander André – Confesso que há certo egoísmo na escrita desses meus textos. Sempre fui curioso, e ao me aposentar, após mais de 30 anos longe da minha cidade natal, senti enorme necessidade de pesquisar sua gente, sua memória, sua cultura. É lamentável que pareça que pouco tenha evoluído, especialmente no que diz respeito à cultura. Falta incentivo, estímulo e condições para que nossos artistas possam se expressar plenamente.
Respondendo à sua pergunta, o que mais me motiva é a possibilidade de reencontrar velhos amigos, conhecidos, seus pais, avós, seja por meio de fotografias, vídeos, e descobrir quanto eles contribuíram para nossa história, para a construção de nossa identidade. Então pensei: por que não utilizar o espaço concedido pelo Jornal de Negócios para realizar essas pesquisas e transformá-las em textos poéticos, com uma certa dose de ironia e surpresas?
iBOM – O que sente na alma ao fazer isso? É gratificante?
Vander André – Para um filósofo em constante processo de formação como eu, é desafiador contemplar esse espaço que você me pergunta, essa “alma” que tantos afirmam ser algo tangível, capaz de gerar sentimentos. Se eu fosse agora abordar a distinção entre corpo e alma, certamente seria o início de um novo ensaio. No entanto, sinto-me em paz, mais próximo do meu vilarejo, das minhas raízes, das pessoas que contribuíram de forma tão significativa para minha formação como um ser pensante. Foi aqui que nasci e onde guardo minhas mais doces lembranças. Agora, ao retornar à minha “Ítaca”, evoco as lembranças de Odisseu, com um olhar de espanto, como se desejasse redescobri-la. Essa experiência é muito prazerosa e gratificante.
iBOM – Você se aposentou no Banco do Brasil e hoje vive entre BH e Bom Despacho. Mais lá do que aqui. O que faz na capital?
Vander André – Tenho residências em ambas as cidades. Meus pais, irmãos e grande parte da família moram aqui em Bom Despacho. Com a idade avançada dos meus pais, sinto que eles necessitam cada vez mais do meu apoio, e agora posso oferecer mais isso, graças à minha aposentadoria. Na capital, continuo meus estudos, minha vida social, presto consultoria empresarial e vivo com meu parceiro, em Belo Horizonte.
iBOM – Mesmo tendo construído uma carreira em BH, mantém intensa ligação com BD. Planeja voltar a morar na cidade?
Vander André – Penso que respondi na pergunta anterior…
iBOM – Pensa em algum momento disputar cargos políticos em Bom Despacho?
Vander André – Todos nós somos seres políticos, pois vivemos em sociedade e, como cidadãos, precisamos participar ativamente das decisões políticas, uma vez que elas impactam significativamente o nosso dia a dia de diversas maneiras, além de envolver não somente cargos no legislativo ou executivo, mas também ações de engajamento comunitário, como o realizado pelos Observatórios Sociais. Por exemplo, estou constantemente encaminhando demandas para os vereadores com os quais tenho abertura na cidade, inclusive para atender às solicitações dos leitores dos meus textos no iBOM.
Recebi propostas para me candidatar a cargos políticos na cidade, me interessei e me decepcionei em questão de meses. Para este pleito de 2024, não tenho mais interesse em disputar cargos políticos.
iBOM – Pode resumir em poucas palavras qual é a mensagem deixada pelo livro?
Vander André – Sobre mim uma sentença representa um apelo, um pedido para que, ao julgarmos alguém antecipadamente, ao atribuirmos um veredito (ou um despacho) sobre o outro, possamos desenvolver a empatia. Precisamos estar abertos ao novo, ao respeito à diversidade e, acima de tudo, realizar um exercício de autoanálise. É necessário atribuir a nós mesmos essa sentença, cumprindo a pena que nosso próprio julgamento interior, ou nossa “alma”, como você mencionou anteriormente, possa nos avaliar por nossas ações ou omissões enquanto membros dessa sociedade que se tornou tão intolerante e racista ao longo da história. (Portal iBOM / Entrevista feita pelo editor Alexandre Borges / Foto: Eder Amaral).
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