Sogra nem pintada: lembranças de uma peça de teatro em BD
LÚCIO EMÍLIO DO ESPÍRITO SANTO – Naquela tarde de sábado, uma euforia estranha flutuava no ar. O centro das atenções era o Cine Odeon, que ficava na esquina da Rua Faustino Teixeira com a Rua Miguel Dias, onde está hoje a churrascaria Trem Assado. Muito antes das oito da noite, uma pequena multidão já se acotovelava, educadamente, nas bilheterias e na entrada. Não sei se era um grupo teatral de fora que aqui viera apresentar a comédia Sogra, que sogra! Sogra nem pintada, ou se era grupo daqui mesmo, dos muitos que existiam, o certo é que houve uma grande agitação em Bom Despacho, nessa ocasião. Apesar do sucesso, a peça não entrou para o nosso imaginário como aconteceu, por exemplo, com o drama As mãos de Eurídice, um monólogo da autoria de Pedro Bloch, apresentado no Brasil inteiro pelo ator Rodolfo Mayer, aqui encenado, com igual brilhantismo, como reza a tradição, pelo nosso conterrâneo Dácio Alves.
As pessoas que ali estavam exibiam elegância, como se estivessem indo para uma festa de casamento ou baile de debutantes. A moda era fazer permanente no cabelo, para deixá-lo cheio de cachos. O que eu via só nas revistas de moda, figurinos e modelos de roupas femininas, apareceu ao vivo em minha frente com toda a profusão de cores, colares, pulseiras, sapatos de salto, perfumes. Os homens de terno e gravata lembravam aquele público de ópera, comum em Roma ou Berlim. Eu nunca tinha ido ao teatro e o que eu conhecia de arte dramática eram aquelas encenações em sala de aula, o teatrinho do recreio e, nas comemorações cívicas, fazia o papel de alguma figura histórica. Como diria o escritor bom-despachense, Wulcino Teixeira de Carvalho, confesso que estava lá, ainda de calças curtas, junto de meus familiares, vivendo as emoções da primeira peça teatral.
O prédio do Cine Odeon ocupava todo o terreno da esquina, tinha altas paredes. Sua fachada lembrava a arquitetura neoclássica da República Velha, da qual ainda restam exemplares como o Bar do Ari e o Hotel Glória. Entrei naquela sala imensa, sem saber bem o que iria acontecer. O primeiro sinal de uma sirene fez cessar as conversações. Ao segundo sinal, silêncio absoluto. Ainda houve um terceiro e finalmente as cortinas se abriram. No fundo do palco, um imenso painel mostrava uma onça, com olhar ameaçador e garras afiadas. Começa o espetáculo. Gargalhadas e gargalhadas, do começo ao fim. Eu ria por imitação, porque não sabia bem que problemas a sogra trazia para um casal. A imagem da onça, no entanto, nunca desapareceu da minha cabeça.
Durante muito tempo, me perguntei que força descomunal tiraria meus pais de casa para ir ao teatro. Com as narrativas de outras pessoas, descobri que a causa provável do entusiasmo e animação era o grande sucesso daquela peça. De acordo com o pesquisador Paulo Simões de Almeida Pina (*), a comédia Que sogra! Sogra nem pintada é uma das muitas de fama nacional e internacional do teatrólogo José Vieira Pontes, português de nascimento, que foi funcionário e depois sócio de uma das maiores livrarias de São Paulo, a Livraria C. Teixeira, dona de vasto mercado editorial, principalmente, na produção de livros didáticos. Vieira Pontes era um apaixonado pelo teatro. Sabia de cor nome de atores e atrizes, colecionava obras e tudo que a crítica dizia nos jornais e livros sobre a arte cênica. Percebendo o aumento da procura por textos teatrais, passou a editar peças de teatro em brochuras de custo acessível, que integram a série “Biblioteca Dramática Popular”, entre elas, a Sogra nem pintada. Vieira Pontes não foi apenas um autor de sucesso, mas um grande divulgador e incentivador do teatro, amador ou não, no Brasil.
Essa peça chegou a Bom Despacho, depois de ter sido encenada, com muito aplauso, no Brasil e em Portugal. Ficou famosa e arrastava grande público aos teatros e circos. Esse relembramento mostra que nossa cidade estava conectada com o mundo. O movimento cultural e seus promotores procuravam ombrear nosso rincão com São Paulo e outros grandes centros, mantendo-se na vanguarda da civilização e do progresso.
(*) Conferir Paulo Simões de Almeida Pina, Uma história de saltimbancos: os irmãos Teixeira e o comércio e a edição de livros em São Paulo, entre 1876 e 1929. Disponível AQUI.