Os retratos absurdos de Pedro Ramos: BD e Macondo

 

LÚCIO EMÍLIO JÚNIOR – O segundo livro de Pedro Ramos, Ode, Veste, Retrato e Outros Contos Absurdos investe na narrativa curta propriamente dita. E ele dialoga com Kafka, Jorge Luis Borges, Garcia Marquez, Guimarães Rosa.

Em seus contos há um mistério que não se entrega, que pede que leiamos mais uma vez, e outra, e mais outra. Não entendemos bem o que ele quer dizer, mas há algo que faísca lá no fundo e nos chama para reler os contos.

A influência de Guimarães Rosa parece-nos muito bem resolvida no conto Conversa à São Camilo. A Febre do Passarinheiro me fez pensar, com suas imagens, em uma paródia do psicodélic estilo cinema catástrofe de Os Pássaros de Hitchcock, situada na Macondo de Garcia Marquez. Ou em Bom Despacho, no centro-oeste mineiro. A Morte Só Dura Trinta Dias parece tratar de vida, morte e ressurreição.

Acho particularmente os curiosos e realistas os diálogos de Ode às Asas de Vidro, inseridos em meio a narrativas orientadas claramente pela lógica do real maravilhoso, da lógica do sonho, causando o efeito que chamamos de choque que, em francês dizemos que “hurlaient d´être ensembles” (gritam de estar juntas). Por exemplo, leia-se um diálogo assim em O Fado e as Roseiras do Dia e da Vez:

– Mamãe, o vovô vai ser cozido?

A mãe, abismada, lhe dirigiu um disparate:

– Cale-se, menino! Por que acha isso?

Comedido, após levar um tabefe, o menino respondeu:

– O vovô é frio igual a uma galinha depenada (RAMOS, 2024, p. 114).

Com essa técnica, Pedro consegue imagens que, por vezes, recusamos com certa impavidez, mas que falam ao inconsciente. São como poltronas aconchegantes às quais sentimos vontade de retornar.

Pedro, nesse livro, retorna a histórias de fantasmas, do sobrenatural, contadas pela família, retrabalhando-as à luz de sofisticadas leituras.
O autor fez, com dom de poeta, uma bela palestra na Biblioteca Pública Jacinto Guerra, introduzindo seu livro. Nela falou das inspirações de seus textos:

“Jorge Luis Borges uma vez disse, em sua obra, o livro busca muito mais do que ele realmente retrata em suas páginas. E, muito mais do que um objeto, ele, sim, contém dentro a vida e também a realidade de quem escreve. Jorge Luis Borges a quem eu tenho entremeado a minha obra Ode, Veste e Retrato. Em alguns contos, em alguns, não todos. E também a sua realidade mais sobrenatural, que se faz tão presente, entre as palavras, entre os títulos. E também entre as histórias. Uma vez Borges, quando já estava cego, uma de suas obras chamada O Outro, um conto, ele é levado a refletir sobre si mesmo. Ele, que estava numa cadeira, de outro passado. E, de outro passado, ele mesmo, diz como seria ficar cego. Do que se trata a cegueira? Ele faz um viés muito poético, muito realista, ele mesmo carregava desde criança. Ele carregava uma patologia hereditária chamada glaucoma. Seu avô ficara cego, seu pai ficara cego e ele sabia que um dia ficaria cego. Ele, diante do outro, diante do pôr-do-sol, ele explica que ficar cego não é nada mais do que um lento pôr-do-sol, não era tão ruim assim. Ele associou o ambiente com a realidade de sua doença. Borges, além do livro, escreveu um conto, talvez seu conto mais caricato. Seu conto mais famoso é a Biblioteca de Babel. Em cada obra, está dita uma realidade que pode dizer milhões e milhões, pode-se sobrescrever. Além de Borges, vou citar Garcia Marquez, um escritor já conhecido, Vander talvez já conheça, um escritor colombiano, um dos primeiros a se enveredar pelo real maravilhoso, corrente que surgiu na Alemanha, não só na literatura, mas também na arte essencialmente, ele e sua Obra Cem Anos de Solidão, uma obra que para mim é uma das mais brilhantes já escritas, que me lembra essencialmente a minha família, lembra a realidade de minha família, dos causos sobrenaturais que tanto cortam o espaço, o tempo, o que nos faz pensar a realidade do que se passa no outro, é pensável, do que é escrito e, posteriormente, do que se leva a crer. Não posso dizer que Garcia Marquez é um escritor cem por cento brilhante. Cada um de nós escritores busca o brilhantismo, refletindo em cada de um de nós seu espírito, por vezes abusando das figuras de linguagem. Garcia Marquez diz muito mais do que parece ser, um caso de uma mulher que conversa com espíritos, um caso de um senhor que procura a guerra, mas depois vira um ourives. Ou também de um homem que ficou louco e se amarrou numa árvore e passou a falar latim. Nas histórias de Garcia Marquez há esse espírito da corrente mágico-realista, cada escritor tem seu espírito, cada escritor tem seu estilo próprio, dentro daquilo que convêm. Há uma vertente que hoje está em declínio, mas que eu quero fazer ressurgir, ressuscitar na minha obra. Eu digo: o ato de escrever também é um ato de rebeldia, quem escreve se rebela contra si mesmo. Diante desse ambiente que nos circunda. Escrever é mais do que aparecer, é se encontrar em meio aos outros. Escrever é transmitir, não só histórias, não só ditos, mas transmitir e deixar transmitir a si mesmo aquilo que é próprio. Ser um livro aberto para os outros. Alguns escritores se escreveram para se esconder, mas apareceram diante de todos. Muitas vezes eles, aturdidos por problemas pessoais. Podemos citar Voltaire, Chopin, que ficaram doentes. Escrever passa a ser mais do que uma atitude, mas também o pensamento transpassa aquilo que ocorre, não sei se algum de vocês já tentaram escrever um livro, é uma experiência libertadora. Escrever para mim é uma catarse. O ato de catarse é expurgar de si aquilo que é ruim. A catarse é uma limpeza da alma. Escrever para ser o deus de si mesmo. Não digo isso de maneira antirreligiosa. Também podemos citar Ernest Hemingway, sua obra O Velho e O Mar, muito mais do que uma obra sobre pesca, sobre um velho que se joga diante do mar, é uma obra inspirada na passagem de Mateus, evangelho de Mateus, em que Pedro se encontra diante do rio sem poder pescar nada. Essa é a realidade do escritor. Ele se faz diante do rio, diante da correnteza que flui de si mesmo e ele não encontra, para procurar um peixe mais belo. É importante que o escritor não deixe de escrever sobre si mesmo”.

Como se pode ler acima, Pedro, curiosamente, também reencontrou, como aconteceu comigo, muito em comum entre as narrativas de Garcia Marquez e os casos contados por familiares.

Nessa obra de contos, Pedro Ramos evoluiu significativamente em sua obra literária, encaminhando sua sensibilidade para os escritores do boom literário latino-americano, o que é um caminho afim de sua sensibilidade. E mostra-se, mais do que uma promessa, um artista local que pode, em breve, ser candidato a voar sem asas de vidro.  (Portal iBOM / Lúcio Emílio Júnior é filósofo, professor e escritor / Fotos fornecidas pelo autor).

 

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