Um lampejo de alegria na escuridão da noite
Mundo afora, entre os povos cristãos, Natal é época de festa. Celebra-se o nascimento do Redentor. É dia de cultos e missas especiais. É noite de ceia farta e de canções que evocam renas, sinos e o bom velhinho; aquele que, de roupa vermelha e longas barbas brancas, vai deixando presentes por onde passa em sua jornada noturna pelos céus do Planeta. É uma noite idílica. Tomam-se bebidas borbulhantes à mesa enquanto crianças sonolentas vigiam seus sapatos sob o pinheirinho iluminado. Na velha vitrola da sala, alguém coloca uma canção natalina que todos entoam com alegria e contentamento…
Anoiteceu, o sino gemeu
E a gente ficou feliz a rezar
Papai Noel, vê se você tem
A felicidade pra você me dar
Eu pensei que todo mundo
Fosse filho de Papai Noel
Bem assim, felicidade
Eu pensei que fosse uma
Brincadeira de papel
Já faz tempo que eu pedi
Mas o meu Papai Noel não vem
Com certeza já morreu
Ou então felicidade
É brinquedo que não tem
Quando a família cantarolou a última estrofe, a mesa tomou ares soturnos. A matriarca tomou a palavra. Com voz embargada e olhos cheios d’água, contou a história que havia lido naquela manhã:
Não há um dia de paz no mundo. Esta noite, em muitos lugares do mundo, uma família, um garoto, um idoso não terão uma cama para dormir, comida para dividir, alegria para compartilhar.
Hoje, o jornal mostrou um garoto de apenas dez anos, vivendo nos escombros de uma guerra. Sua proteção contra o frio era um velho e sujo cobertor puído. Lá fora, o rugido das bombas explodindo e as balas cortando os ares. Mísseis e aviões passavam para lá e para cá. Com cada um vinha o cheiro da morte próxima.
Na sua memória ainda guardava a lembrança de dias melhores. Uma mesa modesta, mas alegre. A avó com suas mãos trêmulas e sua mãe com mãos fortes preparavam os assados e se desdobravam em fazer enfeites. À mesa, irmãos, tias, alguns vizinhos.
Era a felicidade de compartilhar e celebrar a paz. Era a noite Feliz. Mas, neste Natal não havia a luz das guirlandas, mas o clarão das bombas explodindo longe e perto.
Agora, ele estava ali. Mãe, avó, irmãos, vizinhos, eram todos apenas sofrida memória. A violência de uma guerra insana havia levado todos. Ele começou a soluçar. Não sentia falta do bolo da avó ou dos enfeites da mãe. Sentia falta dos carinhos da família. Sentia falta do calor das pessoas.
De repente, uma bomba explodiu perto da janela quebrada. Sob seu clarão, ele viu um brilho num canto do que antes era a sala. Aproximou-se e viu que era o caco de uma bola de árvore de Natal.
Naquele caco estava espelhada a lembrança de sua própria vida. Mas agora, sua vida era a dor do presente e a dor da saudade do que um dia foi, mas agora estava perdido.
Com o caco na mão, lembrou-se de uma canção que sua mãe cantarolava enquanto prepara a árvore de Natal e adornava o presépio montado num canto da sala:
Noite feliz, noite feliz
Ó, Senhor, Deus de amor
Pobrezinho, nasceu em Belém
Eis na lapa Jesus, nosso bem
Dorme em paz, ó, Jesus
Dorme em paz, ó, Jesus
O menino cantou mais alto e mais alto. Parecia querer abafar o barulho da guerra lá fora e afastar de vez o terror das explosões. Sob sua voz a canção subia aos céus como uma prece e parecia criar um escudo que o protegia. Ele já não se sentia aterrorizado.
Enquanto cantava, a lembrança de sua avó, sua mãe, seus irmãos, foi ficando sólida. Era como se todos estivessem presentes. Ele sentiu-se envolvido pelo amor e pelo carinho da família. O frio se foi. O medo se foi. Depois de meses de terror, medo e sofrimento, o menino parecia feliz. Sorriu. Primeiro, timidamente, depois, com mais força, de peito aberto.
Por um momento fugaz, parecia não haver bombas, nem guerra, nem medo. Um lampejo de alegria, felicidade e calor humano rasgou a escuridão, como se a esperança houvesse renascido naquela noite de Natal. Naquele coração jovem brilhou uma centelha de esperança que não se deixava extinguir por mais cruel que a realidade fosse.
Esta é a força do Natal.
A mãe, com voz embargada, lembrou que o Natal representava o renascimento da esperança por um mundo melhor. E pediu a todos que estavam ali reunidos, no conforto da família e na segurança da paz, que dedicassem alguns momentos dos seus dias vindouros a promover a paz entre os homens.
E encerrou, dizendo ter esperança de que, ao contrário da suspeita manifestada na canção, felicidade é um brinquedo que existe, mas depende de cada um de nós querer distribui-lo. (Portal iBOM / Fernando Cabral / Imagem ilustrativa feita com IA).