Língua da Tabatinga no ENEM mostra nossa riqueza cultural
VANDER ANDRÉ – As redes sociais e os grupos de WhatsApp em Bom Despacho não falam de outra coisa: a Língua da Tabatinga foi tema de uma questão no ENEM 2024 (Exame Nacional do Ensino Médio)! E, como se não bastasse, também deve ter sido uma referência para muitas redações, já que o tema deste ano abordou a herança africana no Brasil, pedindo aos candidatos que refletissem sobre os desafios para a valorização dessa herança. É um tema fundamental e muito oportuno, que certamente permitiu aos participantes explorarem aspectos religiosos e o histórico escravocrata do país, promovendo uma reflexão mais ampla sobre a cultura brasileira.
Esse alvoroço todo faz sentido para a cidade. Afinal, mais de 4,3 milhões de candidatos tiveram inscrição confirmada para o exame em todo o país e enfrentaram essa questão no primeiro dia de provas – domingo, 3 de novembro. Assim, Bom Despacho é novamente “notícia” nacionalmente — e, desta vez, não pelo até então desconhecido milionário da Mega Sena, mas sim por uma de suas maiores riquezas culturais: a língua do povo quilombola de Tabatinga. Como destacou com entusiasmo o jornalista Juliano Azevedo na sua rede social: “Bom Despacho está avura hoje? As okaias e os cuetes estão soltando os cambuás. Tipura…”
Em janeiro deste ano, a Prefeitura de Bom Despacho inaugurou o primeiro Livro de Línguas e Falares do Brasil ao registrar a Língua da Tabatinga como patrimônio cultural da cidade: “Símbolo de resistência da população negra, a língua da Tabatinga está presente em nosso cotidiano, em nossos comércios e em nossa cultura. Por ser tão importante para nós e fazer parte de nossa identidade, hoje ela é oficialmente reconhecida como um patrimônio cultural protegido.”
A pesquisadora Sônia Queiroz, em seu livro “Pé Preto no Barro Branco”, relata que a Língua da Tabatinga era conhecida por antigos visitantes da cidade de Bom Despacho como a “Língua dos engraxates”. Isto porque vários trabalhadores deste ofício conversavam nela enquanto lustravam sapatos na praça da matriz. Ela era também utilizada por negros escravizados como uma espécie de “língua secreta”, um código para trocarem informações sobre como conseguir alimentos ou planejar fugas de seus senhores sem serem descobertos.
O conto do Benício Cabral
Vários moradores de Bom Despacho têm se dedicado ao estudo da língua, ao desenvolvimento de dicionários, lançamento de livros, à preservação da memória e à difusão da cultura na história da cidade. Recentemente, Benício Cabral (foto) escreveu um conto, a pedido da equipe da Biblioteca Pública, para ser lido na Noite Mineira de Museus e Bibliotecas, ocorrida em 14 de março deste ano, permitindo que o compartilhássemos aqui no jornal.
O texto fala do êxodo rural, mas, esse não é o centro da história. Na verdade, o autor viu essas coisas acontecerem entre o final dos anos 1960 e final de 1980, na cidade de Bom Despacho. É uma narrativa sobre duas crianças, um menino e uma menina, que vivem na roça e são filhos de um empregado rural. A mãe deles faz coisas gostosas para comer, com os alimentos disponíveis. Os meninos brincam e ajudam a cuidar das criações da roça. Até que um dia, o fazendeiro compra um monte de máquinas e demite o pai, fazendo com que todos se mudem para a cidade e passem por grandes transformações na vida. Veja o texto abaixo.
O significado das palavras da língua da Tabatinga pode ser consultado no dicionário elaborado pelo autor. Acesse o Dicionário CLICANDO AQUI. Veja abaixo o conto escrito por Benício Cabral. (Portal iBOM / Vander André Araújo é advogado, filósofo e escritor / Texto escrito em 17.03.2024 e reescrito em 03.11.2024. Foto do alto foi feita por Benício Cabral feita na Tabatinga em Julho/1981. O nome do idoso mostrado na foto era, supostamente, José Rosa.)
Do Sengue pro Cumbaro
BENÍCIO CABRAL – O camunim-cuete era o Tuir e a camunim-ocaia era a Direne. Ês vivia num conjolo catita, no sengue. O conjolo era do cavinguero, cuete da ingura avura. O Tata dos camunim cuete cafuria avura, uarrufo, cachava curimba pro cavinguero. O Tata tinha o conjolo catita para ficá com a ocaia, Dona Fia, e os camunim.
Diarinha, nem tinha cachado o unde, mal o caramboia-cuete ingirava o cocoricó, Dona Fia cachava os imbuete no fogão, e tacava o undaro, até esquentar a omenha nos cambém. Aí passava o cajuvira bem cafuvira, pro Tata cachá com haver-de-gombê e uns cumicove que Dona Fia fritava no orelo de cangura. O cuete metia os cafanhaque, cachava aquele cureio e ingirava pro conjolo dos gombê, para curimbá.
No esquive, ainda rastando tiprequé, os camunim tipurava, escuitano os baruio dos cambém e da omenha, que os ocora tava na cozinha, e levantava do esquive pra ir tipurá e esquentá na beirada do fogão de imbuete. Era bão.
No conjolo avura do cuete-cavingero tinha um tantão dos tiparo-dos-imbondo opepa. Tinha uruma de escuitá a Difusora. Naquele tempo, no sengue ainda não exisitia uruma de tipurá, a televisão.
Adispois que o Tata saía para cachar os haver-de-gombê, a ocaia-ocora, Dona Fia, passava um cajuvira mais oli, mais ralo, cachano quatro cuié de uíque, pros camunim. Era bão demais da conta. Depois os camunim ingirava. Dona Fia falava para cuidá, tipurá as imbuta venenosa, tipurá o mingué avura do sengue, tinha a pintada e a suçuarana.
No conjolo dos camunim tinha quatro mingué e dois cambuá avura. Os cambuá ingirava junto com os camunim pa todo lado. Por isso que os camunim não tinha medo.
Os camunim ingirava pro sengue, pra tipurá liporê. Tinha liporê insu, liporê uíque, liporê avura, liporê catita. Os camunim cureiava tudo, massarundá, tiporê de uíque, vianjê, pungue verde com mongo.
Os camunim cachava o orongó e ingirava montados no orongó. Também levava mantambu, bugue e resto de cureio pros cangura, no conjolo de cangura. Aí os camunim ingirava pro conjolo das caramboia e ingirava pungue.
Aí, com o jequê atiapo, os camunim ingirava pro conjolo. Todia tinha assangue com indu, tinha camberela, de gombê ou de cangura ou de caramboia, tinha mantambu, urumute e biguibote.
No oteque chegava os ocora da Dona Fia, o Vô e a Vó. Todia, na janta, os ocora, a Vó e o Vô, cachava o cureio no conjolo dos camunim. Dispois do cureio, só no cumba da lamparina, os ocora começava a contar as história de sombração. Lá fora do conjolo tudo escuro e só a baruiada dos cangura do sengue e dos gombê no pasto, dos moxé na omenha avura. De repente começava a cachar a imbera. Dava medo.
O Vô falava que lá no sengue, além dos cangura uarrufo do sengue, tinha também as sombração. Os orangê dos camunim ingirava pro fute, rupiava tudo. O Vô dizia que já tinha encontrado o orongó sem tué que soltava undaro pelos cafanhaque; o cuete cafuvira de um tinhame só, tipurano marcanjo cafuvira no cachimbim; o cuete que tinha os tiploque virado pra trás, montava um cangura e protegia o sengue, os cangura do sengue e os urufim; o undaro fátuo; e também o cumba de Santana.
Dispois os camunim ingirava pro esquife pra rastá tiprequé, mas o medo era avura e os tiparos dos camunim num fechava de jeito maneira.
Nos dia de domingo o Tata não curimbava. Juntava todo mundo e ingirava pro conjolo-de-granjão, catita, que tinha lá no morro alto, pra rezá. A ingira era a uruma-de-orongó. Dispois da missa tinha o que a Direne e o Tuir mais gostava, a vissunga.
Um dia o Tata chegou no conjolo e falô pra Dona Fia. Nóis vai ingirá pro cumbaro. Nóis num pode ficá mais aqui no sengue. O cavinguero me demitiu. Os camunim precisa ir pra escola tamém. Ocê vai lavá as urunanga dos cuete da ingura avura e eu vou cachá curimba na sinderúrgica. Lá precisa de cuete uarrufo pra mexer com minério e montecristo.
Tem que falá com os camunim que nóis vai ingirá com os trem tudo do conjolo. O Mané da uruma-de-carga vai vim domingo cachá os trem. Nóis vai morá no conjolo, lá na Tabatinga, que o meu Otata me emprestô.
Quando a ocaia-ocora falô pros camunim quês ia ingirá pro cumbaro, pra Bom Despacho, os camunim ficaram alegres. Os camunim num tipurava o cumbaro, só tipurava o sengue. Lá tinha conjolo avura de 10 andares, lá tinha conjolo-de-granjão avura, lá tinha muitas uruma, e muitos cuete e ocaia. Tamém muitos camunim pra brincá.
E ingiraro pro conjolo catita da Tabatinga. E os camunim foi pra escola no Caic. E os camunim começaro a viver a vida do cumbaro. Era muito trem bão pra tipurá.
Mas, dispois de uns meses o Tuir e a Direne começaro a chorar, a ingirar omenha dos tiparo. A ocaia-ocora priguntô o que foi que aconteceu. Aí os camunim falaro que tava com sodade do tempo que eles viva no sengue. Lá no sengue é que é bão. No cumbaro é tudo difícil e tudo muito ruim.
O Tuir falô que os camunim da escola chamava ele de cuete-tibanga-do-sengue, ou então de cuete-tibanguara. O Tuir não gostava e ficava uarrufo e ingirava omenha dos tiparo.
E aí, tempos depois, os camoninhos aprenderam que a vida é sempre difícil. Tem que estudar muito e tem que se formar e, quando ficarem grandes, vão querer cachar cassucaro e vão ter que ter uma boa carreira e curimbar para cachar a ingura e comprar um conjolo opepa e uma uruma. Assim é a vida.
Matéria belíssima! Que alegria desse registro! Nossa cultura sendo reconhecida pelo país, no maior Exame de acesso à Universidade. Chique a valer!
Parabéns! Muito legal. É uma honra muito grande participar dessa História.
Excelente matéria. Muito importante reconhecermos nossas raízes, nossa múltipla ancestralidade, nossa identidade. Parabéns a todos os envolvidos com a preservação da Língua e o fortalecimento dos povos quilombolas. A beleza de ser brasileiro é justamente essa formação diversa e rica. Salve!