Sobre monóculos e as imagens do tempo

PINTA SABINO – Achei, nas gavetas de passado no guarda-roupa de minha mãe, alguns monóculos. Ficamos ali fazendo girar um a um na roda que se formou dos cúmplices da vida. Víamos imagens de um tempo em que as fotos exigiam rituais. Eram caras, por isso raras. Normalmente, pretendiam eternizar momentos e balizar a vida: o batizado, a primeira comunhão, a formatura, o casamento, o sepultamento, entremeio ao sagrado, o profano dos parques, dos circos e das viagens e festas. O olho se espremia no esforço de se ver naquele tempo. O baú de fotos da família acabou aberto e o cheiro do tempo tomou a sala. Mortos ganharam vida, jovens de novo são todos, os álbuns celebram os casamentos, e as fotos rasgadas denunciam as separações.

Nas fotografias, a Vila Militar, onde nasci, está cheia de crianças; sou apenas mais uma das muitas que saem ruidosas das pequenas casas e ganham as ruas de cima, do meio e a de baixo. Na casa de cima, em minhas lembranças mora o Padre Pedro. O “Tim doido” invade a cena e a foto da “Banda do batalhão” anuncia a trilha sonora.

Fábrica de Tecidos / Acervo José Pessoa Marra

Nas fotos, o bairro São José, para onde nos mudamos, volta a ser o “Arraial dos lobo – quanto mais cresce, mais bobo”. O Piraquara recém-construído, a garagem da lotação do Faustur, a Mivel Veículos, o Parque de Exposições, a Venda do Sr. Moisés e do Cassinho. Lá longe, o Pau de óleo. Nós, meninos e adolescentes, ocupávamos o campinho de terra. A velha foto do time sujo de poeira comprova a batalha campal contra o time do bairro de Fátima.

Nas fotos de minha lente de criança, Dona Celeste, Dona Célida, Dona Ângela e professor Tadeu eram enormes e de fato o são. As imagens guardadas por minha mãe eternizam o Praxedes.

No baú de minha casa, a Matriz aparece nas muitas fotos, sempre exuberante e imponente, como uma moça que já nasceu rica. Mas isso não apaga a foto da Igrejinha da Cruz do Monte, que se mostra em sua simplicidade e resiste como um canto da ancestralidade.

Luiz Gonzaga toca e canta na Rádio Difusora / Acervo José Pessoa

A música de abertura do Cine Regina quase aparece nas fotos, assim como o primeiro beijo. Muitas e vexatórias são as fotos dos carnavais. Corríamos para comprá-las do Joaquim Ubel e do Zé Pedro fotógrafo, como no passado fizeram nossos pais com o José Pessoa Marra, o primeiro desses nossos grandes fotógrafos.

Muitas são as fotografias com os amigos, que comigo viveram e vivem todos os tempos. Muitos braços e abraços, cerveja que encheria furnas, risos que lotariam circos. Vivemos juntos formaturas, casamentos, doenças, nascimentos, separações, mortes, tudo o que a vida traz e leva.

Por um pequeno monóculo, o que vi foi o quanto de nós é formado pelo nosso lugar, o quanto que nós e o nosso lugar se fundem e se confundem. Habitamos uma cidade, mas somos povoados em nossa memória pelas pessoas e lugares dessa cidade. Isso é que nos enche de sentido, de marcas de toda ordem, de amores e dores.

Meninas de Bom Despacho fazem a 1ª comunhão / Acervo José Pessoa

Foi esse meu sentimento, compartilhado por muitos, como Carol Moreira, Renner Menezes, Vander André e Denise Coimbra, que fez surgir o projeto Nossa História – Bom Despacho, que recolhe, organiza e digitaliza fotografias da gente e dos lugares de nossa cidade. Tínhamos que começar por algum lugar e, graças à generosidade e grandeza da família do fotógrafo José Pessoa Marra, tivemos acesso ao acervo por ele produzido entre os anos de 1940 e 1970. São mais de 900 fotografias impressas, cerca de 1200 em filmes em películas de acetato e 97 em suporte de vidro em emulsão de gelatina e sais de prata.

Considerando os materiais e as técnicas utilizadas de fotografia e revelação, o acervo por si só já nos possibilita uma exposição da história da fotografia!

As fotografias e filmes foram organizados e higienizados por nós. Separamos as fotografias por assuntos e tipos (eventos sociais, eventos públicos, fotos de estúdio, registro de famílias…), e iniciamos a digitalização, a começar pelas fotografias, pois os filmes exigem maior cuidado na higienização pela maior vulnerabilidade aos produtos químicos. O projeto conta com a consultoria e trabalho de um historiador e restaurador, Pedro Brito, que por anos trabalhou com o acervo fotográfico do Arquivo Público Mineiro, o que assegura a certeza e qualidade nos diversos processos.

 

Pinta Sabino organiza fotos antigas / Acervo José Pessoa

Paralelamente ao trabalho de organização e digitalização, avançamos na divulgação das fotos que estão sendo disponibilizadas no Instagram e já vêm sendo compartilhadas em diversas páginas e no WhatsApp. Acesse clicando AQUI. Pedimos apenas que não esqueçam a referência ao projeto Nossa História e que jamais deixem de citar a autoria do fotógrafo José Pessoa Marra. Produzimos também alguns vídeos curtos registrando a memória de algumas pessoas, como celebração a elas e a cada um de nós que nos vemos com suas lembranças e nos identificamos com suas histórias e humanidades. Assistam, na nossa página no Instagram, ao vídeo com os relatos da professora Lourdinha e de Geraldo Vaz, o nosso Lalado.

Neste projeto, difícil é se concentrar; é impossível ignorar as muitas gentes, lugares, acontecimentos que saltam das fotos e parecem querer ganhar vida em nossas lembranças ou imaginação. Cada pessoa identificada, cada lugar é entendido e sentido por nós como uma celebração não ao passado, mas à vida que habita em todos nós, à Bom Despacho que mora em nós. (Portal iBOM / Herberton Sabino é professor e pesquisador / Fotos: Arquivo projeto Nossa História / Foto do alto: comício de Jânio Quadros e Magalhães Pinto em Bom Despacho, com Nicolau Leite discursando – Acervo José Pessoa)

 

One thought on “Sobre monóculos e as imagens do tempo

  • 23 de junho de 2024 em 12:20
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    Mandei um comentário mto importante mas ,não estou achando,vou mandar outro vê se achas. O texto é grande.

    Resposta

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