A charrete da alegria de tempos passados em BD

 

VANDER ANDRÉ – Semanas atrás, a noite em Bom Despacho esteve agitada, com uma enorme fila se formando na Praça da Matriz. Pais e crianças aguardam ansiosos para embarcar na Carreta da Alegria, após pagar 12 reais por pessoa acima de 2 anos, e desfrutar de um passeio pelos bairros da cidade até o São Vicente. Ao som de músicas animadas e infantis de outras épocas, podem assistir às peripécias do Fofão, Homem Aranha, Patati Patatá e outros personagens.

Há algumas décadas, talvez mais de quatro, eu costumava acompanhar meu pai numa charrete pelas ruas de Bom Despacho. Sempre gostei do nome desse veículo de tração animal, originário do francês “charrette”, diminutivo de “char”, carro, do latim “carrum”.

Recentemente, tomei conhecimento de que algumas cidades em Minas estão proibindo veículos de tração animal. Na capital, por exemplo, uma lei de 2021 prevê a substituição gradual em dez anos. Em Poços de Caldas, um projeto inovador que combina mobilidade elétrica, geração fotovoltaica, turismo, sustentabilidade e proteção aos animais está em andamento. Uma startup chamada Verth Tecnologia, em parceria com o Instituto Federal Sul de Minas, a PUC Minas e o DME, desenvolveu um protótipo de carruagem elétrica que substituirá as charretes por lá. Os condutores estarão vestidos a caráter e fornecerão informações turísticas por meio de GPS.

Entregando leite

Por aqui, no cerrado, costumávamos andar nesse “trem”, em velocidade baixa. Às vezes, meu pai dava uma chicotada no cavalo para acelerar o trote quando a chuva chegava sem aviso, ou puxava o arreio para trás para que o equino parasse nos pontos de entrega. Era desagradável e vergonhoso para mim quando o cavalo decidia fazer suas necessidades em plena rua, deixando um rastro de fezes malcheirosas.

Nos dias de sol forte, quando terminávamos as entregas do produto da fazenda e voltávamos para casa, ele com seu chapéu e eu sem nenhuma proteção solar, havia apenas um canto do seu quadril, como sombra ou apoio paternal, quando o cansaço me abatia. Na parte de trás, havia uma lata de leite in natura com 50 litros, que distribuíamos pelas casas logo cedo. Meu pai ordenhava as vacas assim que o sol nascia, e eu acompanhava o leite descendo do úbere das vacas até o balde, formando uma espuma branca. A unidade de medida que ele utilizava para o litro vendido era uma lata de óleo, que vinha com uma alça. Quando chegávamos na casa do cliente, lá ia eu com minha vozinha infantil anunciando: “ó o leite”.

Fazíamos esse percurso da roça até a cidade diariamente. Meu pai geralmente estava calado, às vezes perguntando se eu estava com sono, com fome ou se havia visto algo diferente na estrada. Ele tinha suas preocupações adultas, como as contas a pagar, os sonhos da minha mãe de se mudar para a cidade, para perto da Cruz do Monte e os desafios que isso acarretava. Eu o acompanhava com meu olhar curioso, minha inocência e alegria da vida no ambiente rural, distante de todo o progresso que se aproximava na cidade e das preocupações com o preço do produto entregue na cooperativa.

Quando chegávamos ao posto de coleta de leite da Nestlé, ali na Tabatinga, eu ficava admirando o maquinário, o cheiro forte do laticínio e o trabalho dos homens que despejavam o leite nos tanques. Alguns pareciam cientistas, mas descobri mais tarde que estavam fazendo análises da qualidade do leite, recusando algumas entregas quando detectavam doenças no produto, como aftosa.

Mas eu estava falando mesmo era sobre a charrete. Aqui em Bom Despacho, às vezes vejo vídeos e fotos de cavalos soltos pelas ruas da cidade, entrando em restaurantes chiques na Doutor Roberto ou pastando tranquilamente nas praças dos bairros e os seguidores da rede social exigindo providências do poder público.

Hoje, ao chegar em casa, deparei-me com uma charrete e seu animal parados ali perto da Igreja Matriz, na Rua Lambari. Infelizmente, não havia pai nem criança acompanhando. Fiquei ali por alguns instantes esperando a chegada do seu proprietário, registrei o momento em uma foto, mas foi em vão. Ninguém apareceu, e o sol castigou minha espera no meio da calçada, quando decidi entrar em casa.

Isso pode ser um sinal de que os tempos mudaram, as paradas obrigatórias são diferentes, e as pessoas encontram outras formas de se locomover livremente pelo espaço urbanizado. Isso me deu uma saudade e uma vontade de montar naquela charrete ali paradinha na minha porta e sair por aí, como aquele menino da Fazenda da Prata que acompanhava o seu pai.  (Vander André Araújo é advogado, filósofo e escritor / Fotos: Arquivo Sílvia Araújo).

 

2 thoughts on “A charrete da alegria de tempos passados em BD

  • 23 de abril de 2024 em 21:14
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    Vovô Zé Bento! Gerações utilizando a charrete! Lembrança afetuosa de tempos que nos forjaram pessoas sensíveis e fortes ao mesmo tempo. Ó o leite! Ó o leite! Sô Hermes, Sô Geraldo! Sô Agnaldo! Sô Jairo! E tantos outros…

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  • 24 de abril de 2024 em 15:11
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    Boas lembranças com o seu texto. Era a charrete do açougue, do pão, do leite… Sô Nigrinho fazia o corre da charrete do leite alí pelas bandas da Rua da Olaria; pelas bandas da Rua da Biquinha era o Sô Marreco.
    De vez em quando vinham produtos “da época”, como mandioca, mexerica, laranja, banana, jabuticaba, abacate, verduras, ovos, frango vivo sob encomenda.
    Tempos diferentes. Tudo era vendido fiado, na base do “fio do bigode”, e não havia cano. O leiteiro sempre passava no harário da manhã. Todos pagavam por mês da data ajustada com o leiteiro. Com ou sem chuva lá estava o leiteiro.
    Com o tempo foi popularizado o leite “no saquinho”, disponível na geladeira da “venda” mais próxima, além da opção de buscar naquela “vaquinha” de alumínio da Cooperativa. Chegou na cidade o 1º “Varejão Sacola Cheia”, padarias nos bairros, os mercados passaram a ser organizados com suas seções de hortifrutis, panificadoras, laticínios.
    A charrete foi desaparecendo aos poucos, junto com as barracas de verduras (barraqueiro hoje é outra coisa), a “banda de porco” sobre o balcão da venda, os produtos vendido a granel nas antigas balanças de pesagem, aqueles baleiros para vários sabores, o sapateiro, o foieiro, a venda de canecas e pratos esmaltados, o carro que trocava garrafas por pintinhos, a garotada que saía com carrinhos e caixas de picolés, a máquina do xarope de sorvete (a última que vi funcionando foi perto da rodoviária de Boa Esparança/MG; 1,50 cada em fizemos a festa), o vendedor de caixas de uvas e abacaxis…

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