Toninho Saudade: essa tal felicidade mora aqui

 

LÚCIO EMÍLIO JÚNIOR – Em Tunico (editora Libélula 25), o autor contou a sua infância em um romance autobiográfico. A minha competentíssima colega Regina Garbazza explicou em sua apresentação:

Neste livro o autor narra a sua própria história, quase toda vivida na Mata do Batalhão ou nos seus periféricos (…). Convido o leitor para se deliciar com essa narrativa, para sofrer, chorar e rir muito com as peripécias de Tunico, esse personagem extraordinário, que nos ensina o caminho da solidariedade e o valor imensurável da família.

Menino de Bom Despacho, Toninho cria canções que retratam belezas e peculiaridades de nossa querida cidade e região. Uma das canções junto das quais ele mais tem carinho é Minas de Ouro, canção adotada por Dedé Paraizo da banda Demônios da Garoa.

Recentemente, Toninho Saudade teve uma participação em um documentário com sua música o Cafuvira quer Injira, canção que ele compôs no dialeto da Tabatinga. O título quer dizer “O Negro quer Liberdade”. Toninho foi filmado na casa do Bené Peão lá na Tabatinga. Sônia Queiroz, poeta e autora de Pé Preto no Barro Branco, estudiosa pioneira da Língua do Negro da Costa, também fez uma bela participação. O episódio foi exibido pela TV HBO Max.

Minha mãe, Maria Celeste de Morais, deu um belo depoimento sobre Toninho Saudade:

Conheci o Toninho em um grupo cantante (Trovadores do Amaral) no Bairro São José, sob a liderança e o violão dessa pessoa magnética que eu não sabia ainda ser o autor do livro “Tunico”, nem que seu codinome era Saudade. Não liguei o livro ao autor, embora o tivesse lido e me encantado com aquele menino órfão de pai aos três anos e chamado a ser o “homenzinho da casa”. Essa responsabilidade, tão cedo lhe foi impingida, não lhe tira a leveza da infância pobre, mas imensamente vivida. Quem pertenceu a famílias numerosas se identificou com os banhos de bacia em água reaproveitada do irmão mais novo, nos mecanismos para ganhar aqui e ali um trocado, na divisão igualitária da rosca Rainha, tão rara e tão cara. Quem não foi discriminado por entrar sujo e descalço em uma loja cara e sair glorioso por comprar um sabonete especial para a mãe, no Dia das Mães? Quem não subiu em um pé de manga ou de jabuticaba e se esbaldou? Quem não teve uma tia acolhedora e uma vizinha cúmplice das traquinagens infantis?

Toninho trouxe de volta um tempo em que se “quentava” fogo no rabo do fogão, em que o café era bebido nas latinhas de alças improvisadas e os primos se visitavam em rodas seresteiras, despertando cedo o amor pela música.

Quem não criou naquela época uma galinha de estimação e não sofreu ao saber que ela estaria condenada à panela em um domingo banal? Quem não teve um vizinho que se despencou no esgoto a céu aberto, tão comuns na Bom Despacho antiga?

Toninho teve o privilégio de ter quase no seu quintal a Mata do Batalhão, com sua “bomba” de água e de usufruir das piscinas desativadas do Clube Militar, sob a supervisão de um soldado raso, de nome “Risada”. Criança, Toninho viu a fraqueza humana no ego do Praça que se transformava ao ser chamado de Oficial, na valentia que um chocalho de cobra desmascarava e expunha um medo incontrolável…

O sonho dos meninos de então era alcançar o presente máximo uma Monareta ou uma bicicleta e para concretizá-lo seguiram à caça de um tesouro, deixariam a família sobressaltada após o sumiço e voltariam de rabinho entre as pernas, livres da surra pelo pedido da avó ao pai: “judia deles não”.

Estilingues, gaiolas e alçapões, sustos e castigos povoaram aquela infância. Não faltaram sucatas para a venda e nem vendas para devolver os cascos de cerveja, que os meninos recolhiam sob pequena gorjeta.

As frustrações aparecem quando a bola dente de leite cai nos espinhos da roseira, quando o leite distribuído de graça na sexta-feira da Paixão acaba em um piscar de olhos e deixa a ver navios os meninos e suas latinhas barulhentas.

A exultação surge após a recompensa da vizinha Elô e seus beijos inocentes e quando todos os picolés são vendidos rapidamente com a propaganda quase enganosa de “picolés de leite de moça”.

A mentira não compensa quando a trapaça com o garnizé acaba nas “correiadas” do tio catireiro.

“Juca Doido” nos faz pensar em Guimarães Rosa no conto “Soroco, Sua Mãe, Sua Filha”. O anãozinho logrado à magnanimidade de Juca com o dinheiro alheio promove a alegria da garotada na venda de seu José, onde o guaraná rolou solto.

A confecção do pião em uma aula de Seu Mingau é uma bela lição de vida. Com o formão em um pedaço de peroba rosa, os meninos esculpiram o próprio brinquedo e aprenderam que nós também precisamos nos deixar moldar pela luta e pelo sofrimento e nos tornaremos mais fortes e imunes às turbulências da vida.

As artimanhas do menino Tunico remontam ao Pedro Malazarte quando ele engambela o porteiro Seu Manoel.

Nada é mais trágico que a queda de Tiquinho de pé de manga, onde os irmãos brincavam de nave espacial. Acusado de derrubar o irmão, Tunico se desespera, briga com Deus e se abriga com seu cachorro Ringo embaixo de uma paineira, que se torna repleto de borboletas brancas. Não há como não pensar em Gabriel Garcia Marquez e suas borboletas em “Cem Anos de Solidão”. No terceiro dia em que o menino se abrigou debaixo da paineira, as borboletas voltaram. Desta vez, coloridas. Pareciam um bom augúrio. Despertaram em Tunico a ideia de ir ao Hospital e levar frutas silvestres para o irmãozinho em coma. Com mil peripécias, ele dribla o porteiro e as enfermeiras e chega ao irmão. A conexão se faz através das borboletas quando o irmão ligado aos aparelhos fazendo bipes…bipes e oxigênio ligado ao nariz, movimenta as mãos, abre os olhos e diz: “elas eram lindas!” Ali, Tunico descobre “essa tal felicidade”.

A roda da vida transformou o menino em um compositor que canta a beleza de sua amada Bom Despacho, pesquisa sua história e cultiva sua cultura. Toninho Saudade é um ser humano ímpar, moldado na simplicidade, que nos faz pensar na veracidade de um versinho: “para ser feliz é só não deixar de ser criança”. Obrigado, Toninho Saudade, por sua felicidade compartilhada!  (Portal iBOM / Lúcio Emílio Júnior é filósofo, professor e escritor / Fotos: Arquivo Toninho Saudade).

 

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