Que possamos salvar vidas e não apenas chorar as partidas

 

Fiquei muito chocada com a morte prematura e desnecessária da minha doce amiguinha do cabelo bonito. Ela tinha quase a idade da minha filha. Uma vida pela frente.

ROBERTA GONTIJO TEIXEIRA – O almoço, em casa, é feito diariamente. Gosto de fazer as compras de legumes e verduras poucas horas antes de serem preparados. Assim, vou ao mercado quase todos os dias. Desde a pandemia, adquiri o hábito de frequentar aquele Fidelis que fica na antiga linha (perto da Panolli). Acho ele amplo, arejado, a música é sempre boa (uma MPB suave) e a equipe de funcionários muito gentil.

Como adoro uma prosa e os empregados de lá me acolhem muito bem, arrumo um assunto com quem está me atendendo, particularmente os caixas.

Tinha uma menina, quase da idade da minha filha, de quem eu gostava particularmente. A gentileza no trato, o sorriso sempre aberto e a afinidade que a gente tem com algumas pessoas sem saber explicar o porquê.

Nosso assunto era restrito, sem muitos traços de intimidade, mas sempre muito agradável. Girava, via de regra, sobre a beleza do cabelo que ela tinha.

Eu chegava no caixa dela, todas as vezes que a via, mesmo quando ela estava fora do caixa e perguntava: acho que já te contei que você tem o cabelo mais lindo que eu já vi, né? O cabelo tinha cachos tão bonitos e bem definidos que, junto com a delicadeza e o sorriso aberto, chamavam a atenção da gente.

A partir da deixa do cabelo, entravamos em um curto diálogo, resumido a trivialidades.

Criamos assim um pequeno laço. Ela, de alguma forma, passou a fazer parte dos meus dias.

Minha filha tem uma amiga que trabalhou muito tempo naquele Fidelis. Outro dia, já no fim do mês de janeiro deste ano, ela comentou: mãe, faleceu uma menina que trabalhava com a Joyce no Fidelis da linha – como chamamos aquela loja do supermercado.

Uma sensação ruim tomou conta de mim e logo pensei: tomara que não seja alguém que eu conheça.

Quando ela me mostrou a foto meu mundo caiu. Era minha doce amiguinha do cabelo bonito. Fiquei muito chateada e chocada. Ela tinha quase a idade da minha filha. Uma vida pela frente. Seu nome era Nicolly Soares da Silva. Faria 20 anos no próximo dia 16/2. Trabalhava no Fidelis desde 2021 e era fiscal de caixa.

Deitei na cama naquele dia com o peito apertado. Bati um papo com ela na minha cabeça, entreguei-a a Deus e desejei, como faço quando perco pessoas queridas, que haja um outro lado e que a vida por lá seja boa.

Conversei com ela como se estivesse no meu quarto. Me despedi, consolei-a, disse que cada um cumpre sua jornada nessa Terra e que Deus tinha novos projetos para ela. Falei, também, como não podia deixar de ser, que o cabelo continuava lindo. Chorei um pouco e a angústia do peito apertado aliviou, dando lugar a um sentimento mais objetivo. O da análise das circunstâncias que envolveram sua morte.
Estamos vivendo um surto de dengue, na cidade, no estado, no país.

E as informações sobre como prevenir e evitar a doença que chegam até nós muitas vezes são ignoradas. Ou simplesmente não executadas. Pode parecer ladainha repetida, mas fato é que ainda não interiorizamos as instruções ou não nos demos conta da consequência das nossas omissões.

Prova disso é o levantamento rápido de Índices para o Aedes aegypti, de sigla LIRAa, realizado no município de Bom Despacho entre os dias 22 a 25 de janeiro. Essa metodologia permite conhecer a quantidade de imóveis com a presença de recipientes com as larvas de Aedes aegypti, que é o mosquito transmissor de dengue, chikungunya, zika e febre amarela.

O primeiro LIRAa de 2024 realizado em Bom Despacho mostrou que o Índice de Infestação predial está em 18,2%. Este é o índice de imóveis onde foram encontrados focos do inseto. Importante registar que, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), os resultados deveriam estar entre 0% e 0,9%, pois acima de 4% os índices já são considerados de alto risco.

Estamos muuuuuuuuito acima do desejado. Então, de alguma forma, somos responsáveis por essa infestação e, infelizmente, pela morte da minha amiga do cabelo cacheado, que, supostamente, morreu de dengue hemorrágica. A causa da morte ainda está sendo apurada oficialmente. Falando assim parece soar agressivo, mas essa é a verdade. Não pretendo isentar de responsabilidade o poder público, que também precisa realizar seu trabalho, nos níveis municipal, estadual e federal.

Mas, como sempre repito para mim mesma, para que eu também possa por a vida nos trilhos e as responsabilidades em dia, precisamos de mais comprometimento social. Precisamos ficar mais atentos as nossas ações e omissões. Pregar menos, falar menos sobre “amar ao próximo como a nós mesmos” e por em prática o amor responsável, que cuida, que assume, que é honesto, que cumpre suas obrigações e faz o que precisa ser feito.

Vivemos em sociedade e, muitas vezes, tenho a impressão de não nos darmos conta disso: ligamos nossa música em alto e bom som, impondo-as aos que nos cercam, deixamos nossos telefones ligados em salas e recepções, sem usar fones ou perceber que aquilo é uma poluição sonora. Muitos ainda jogam lixo nas ruas, nas estradas, no entorno da cidade, nas calçadas ou onde quer que estejam. Há, ainda, os que se sentem no direito de desmatar e poluir. Fora os que invadem, exploram e se beneficiam do outro de uma forma inescrupulosa, quase escravagista. Outro dia, vi alguém dizendo que sentamos num bar, gastamos cem, duzentos reais numa noite e, quando vamos recolher o FGTS ou pagar uma hora extra a nosso empregado, pelo trabalho de um mês inteiro, achamos qualquer valor uma fortuna.

Falta-nos, de fato, empatia, cuidado, zelo e responsabilidade social. Falta-nos amor. Amor responsável e cuidadoso. Falta-nos civilidade.
Que a adquiramos e que saibamos enxergar e adotar medidas mínimas da boa convivência, do respeito ao próximo e da civilidade. Que possamos salvar vidas como as da minha amiga do cabelo bonito e não apenas chorar e sentir a partida precoce dela. (Portal iBOM / Roberta Gontijo Teixeira é bacharel em Direito, ambientalista e servidora pública federal / Foto arquivo da família)

 

One thought on “Que possamos salvar vidas e não apenas chorar as partidas

  • 17 de fevereiro de 2024 em 21:38
    Permalink

    Muito tocante e necessário o seu texto. Assim como na pandemia, agora com a Dengue estamos tendo uma oportunidade de crescer como seres humanos, buscando fazer a nossa parte para o bem comum. Infelizmente muita gente não entende os própositos dos obstáculos que surgem. Cada situação ruim tem algo a nos ensinar. Pelo menos, eu penso assim. Que aprendamos que somos partes de um todo, que, se destruído, afetará a todos, mais cedo ou mais tarde. Se não pensamos no irmão por uma questão de humanidade, que saibamos que tudo nos será cobrado. Não por Deus (Ele também cobrará), mas pela vida, que sempre acha um jeito de mostrar que só a evolução de todos nos levará a um mundo mais justo, mais equânime, mais fraterno.

    Resposta

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *