Dona Celma Araújo, uma história para o Novo Ano

 

VANDER ANDRÉ – Quando um novo ano se inicia é comum, para mim, relembrar a infância, as origens e o início da minha existência. Imediatamente surge na mente aquela que deu luz à minha vida: Mãe. Parece que, ao relembrar a maternidade, minha crença em um futuro melhor se intensifica, gerando expectativas de um recomeço, de uma maneira mais leve e mais promissora.

A minha mãe, Celma Maria Araújo, completou recentemente 82 anos e a sua curiosidade em relação às coisas da terra, do céu e do ar a faz parecer uma recém-nascida. Ela anseia por conhecimento, perscruta, indaga e, a partir das novas informações, formula hipóteses, criando e sendo bastante imaginativa. Talvez devido à sua pouca formação escolar, concluída apenas até o primeiro ciclo, ela busca resgatar o que a vida moderna poderia ter lhe proporcionado nos bancos escolares. Valendo-se das experiências cotidianas e dos diálogos frequentes com aqueles que ainda dispõem de tempo e conhecimento, ela nutre essa busca incessante por aprendizado.

A grande pedra

Vivendo o presente, relembrando o passado e inventando novas passagens, minha mãe gosta de prever o futuro. Baseando-se em intensos estudos bíblicos e exegéticos, compartilhados com as amigas da igreja católica, ela insiste em relatar, com riqueza de detalhes, sobre a grande pedra que, segundo ela, nos extinguirá em breve da face da Terra. Ela colore em cenários dantescos outras formas inimagináveis do fim da nossa “odisseia humana na Terra”. Mesmo que suas histórias aterrorizem seus netos pequenos, muitas vezes terminam em risos da plateia, como se, com bondade, ela quisesse nos precaver disso, argumentando que basta praticarmos o bem e o amor ao próximo, pois o paraíso nos aguarda, “se Deus quiser”.

Nascida em 1941, em um berço de família simples na zona rural de Bom Despacho, região do Ermo, ela é a filha mais velha de Alcedino Ribeiro Pinto e Eni Cardoso. Desde cedo, desenvolveu habilidades domésticas e ajudou seus pais nos cuidados da casa diante da chegada de nove irmãos. Na infância, gostava de dançar, ouvir rádio e se orgulhava de ser da única família na região com um aparelho de rádio, que trazia alegria em bailes realizados em casa, amenizando a difícil vida naqueles tempos.

Durante a infância, ajudava no processo de fabricação artesanal do polvilho, descascando mandiocas, a base do sustento familiar. Logo cedo, teve que deixar sua família e ir para a cidade de Bom Despacho estudar, morando na casa da sua tia. Naquele lugar, deparou-se com uma realidade ainda mais precária, marcada por consideráveis dificuldades financeiras e pelos males que assolavam a população à época. Doenças decorrentes da ausência de saneamento básico urbano eram comuns, e as restrições alimentares eram uma realidade em um país ainda pouco desenvolvido, enfrentando crises mais severas no abastecimento e na distribuição de renda do que as que observamos atualmente.

Casamento com João Bento

Casamento de Celma e João Bento em 1962

Mesmo com os desafios, concluiu o Curso Primário em 1956 no Grupo Escolar Coronel Praxedes, com diploma assinado pela diretora Dona Divina Campos. Para evitar namoricos típicos da adolescência, foi encaminhada para uma escola agrícola coordenada por freiras em Ibirité, a Fazenda do Rosário, onde aprimorou técnicas de cultivo da terra e concluiu sua alfabetização.

Casou-se em 1962, aos 21 anos, com João Bento, conhecido como Pezão, um homem alto, com um belo par de olhos verdes, filho de outra família numerosa, os Araújo, também fazendeiros e com melhores condições financeiras até então. Dessa cerimônia religiosa ainda guardamos a foto na porta da igreja Matriz, com seu buquê de flores copo de leite e a dama de honra, sua irmã Catarina, testemunhando a união.

Inicialmente, moraram na Fazenda São Bento, dos sogros, em condições simples, numa casa de pau-a-pique, dormindo num colchão de palha. Depois mudaram-se para outra fazenda no Ermo, convivendo com onze cunhadas e dois cunhados, colaborando na realização das atividades da fazenda, trabalhando muito, cuidando da horta, além de fazer a tosa das ovelhas, tecendo o fio para as colchas de lã e, ao mesmo tempo, iniciando a constituição da sua própria família, as filhas, Sílvia e Ciuslene, seguidas por Samira, todas com ajuda da parteira alemã Dona Alma.

Compra da fazenda

Com determinação, concluiu o curso de Professores Rurais em 1968, recebendo o certificado das mãos do prefeito Geraldo Simão Vaz. Somente em 1971, após o meu nascimento no Hospital Doutor Miguel, com ajuda do Doutor Mesquita e a aquisição da Fazenda Pasto Grande, na região da Prata, Mãe conseguiu viver no próprio cantinho com o marido e os quatro filhos, sob as bênçãos do Padre Libério.

A compra dessa fazenda do senhor Assolino foi viabilizada com empréstimos no Banco do Brasil, auxílio financeiro do amigo Belmiro, falecido esposo de Dona Margarida, e do padrinho de casamento, Sr. João Araújo. Sem a casa-sede no início, enfrentamos desafios, morando numa pequena casa próximo da mina d’água. A renda familiar se baseava na produção na lida da fazenda com a venda de alho, arroz, milho. Para aproveitar a pastagem e iniciar a produção leiteira, ali foram colocadas cabeças de gado caracu. Vivíamos numa casa pequena, que sofria durante as fortes chuvas de pedra e que nos deixavam atônitos e a mãe mais ainda, pedindo proteção à Santa Bárbara, uma vez que ficava muito sozinha conosco, pois o Pai cuidava da nova terra, além de conduzir a construção da casa na sede.

Carne na lata

Celma na Escola da Fazenda Rosário

Com o tempo, as coisas na fazenda melhoraram. Mãe colaborava nas atividades agrícolas, promovia festas juninas alegres e prestigiadas. Uma nova vida pela frente, para onde “o vento levou”. Na colheita de alho e cebola, ela fazia as réstias, em belíssimas tranças dispostas nos varais pelos quartos; batia com força o feijão e o amendoim no terreiro, promovendo a sua limpeza. Após a colheita e o beneficiamento do arroz, armazenava-o em grandes caixões de madeira no quarto de hóspedes. Criava galinhas e delas obtinha ovos com fartura. Pai sempre teve porcos numa vara próximo da casa e frequentemente abatia um deles, conservando a carne na banha, em latas de leite, consumidas pela família por longo tempo, além das linguiças que ficavam ali dependuradas sobre o fogão a lenha na cozinha, ao lado das “péias” no varal. Contavam com a ajuda das queridas e saudosas Rosinha, Nair, Dona Zilda e tantas outras que minha memória falhou, algumas delas vindas da “África”, como meu pai dizia, além dos jovens Donizeti e o Pedro Catôco.

Girinos e o ciclo da vida

Mãe lecionou na escola rural que ficava próximo da fazenda, distando poucos quilômetros, para onde tinha que se deslocar a pé, atravessando córrego, carregando consigo a merenda de sopa, arroz doce e outros doces, além de ter que levar a tiracolo os quatro filhos. Em uma turma multisseriada, a atenção docente tinha que ser compartilhada entre os vários interesses e aptidões e ela, com toda a calma, numa caligrafia invejável, escrevia com carvão as atividades no quadro, dividindo em quatro partes e, em cada parte, anotava as tarefas para uma série, que os alunos realizavam com atenção. Promovia excursões com os meninos no córrego para verem os girinos e compreenderem melhor a “biologia” e o ciclo da vida na natureza. Gostava de cortar o cabelo dessas crianças e delas nutre enorme saudade e grande consideração de muitos que foram seus alunos e, de vez em quando, aparecem na sua casa no centro de Bom Despacho, para relembrar juntamente com ela os “bons tempos”.

Na sede da fazenda, todos acordavam cedo com o bom dia do Zé Bettio no Rádio, o gado já no curral, a produção de leite aumentando. Na época da colheita do milho, Mãe fazia muito mingau e pamonha; na da goiaba, após aquelas chuvas intensas de São José, deliciosas goiabadas em tacho que respingava o doce pelando de quente em nossas pernas; da cana de açúcar, o melado e a rapadura adoçando a nossa vida.

Luzes no Céu

Mãe gostava de promover as festas juninas, fazia quitandas no forno de barro, assando biscoitos e roscas, varrendo o forno com vassouras de alecrim, trazendo para o espaço o seu cheiro peculiar, tudo feito com carinho e muita fé para homenagear São João Batista em noites frias de junho, quando toda a gente se reunia para lá rezar, comer, beber, pular fogueira.

Mãe enxergava luzes no céu infinito da fazenda, alienígenas, ao longe no pasto, especialmente quando retornava, tarde da noite, ao lado do seu marido, na charrete que lhes acompanhou por longos anos e repetia essas histórias como que enxergando extraterrestres por ali. Mais recentemente, passou a enxergar uma onça na fazenda, uma história de aparição que ela insiste em contar e recontar…

Em 1977, ela teve o seu quinto filho, Sávio, e nos mudamos para a zona urbana da cidade de Bom Despacho, na Rua Capivari, bem perto da Cruz do Monte e da Tabatinga e Pai manteve a rotina da ida diária para a fazenda, antes das seis da manhã. Com esforço, ele construiu um barracão nos fundos do lote, para onde nos mudamos, com um imenso quintal à frente, repleto de flores e coração magoado plantados em manilhas, além das jabuticabeiras.

Mãe passou a trabalhar na Prefeitura Municipal, no RH, sob a gestão do Dácio. Curiosa e empreendedora, não se acomodava no lugar e quando surgiu na cidade a grande novidade dos cursos de datilografia, recebeu o seu certificado em 1981, do secretário municipal de Educação, Tadeu Teixeira, apesar de datilografar com apenas um dedo em cada mão. Ela se aposentou cedo para melhor nos acompanhar em casa e orgulhava-se do nosso desempenho escolar.

Nova casa

Mãe aproveitou a oportunidade que surgiu para trocar de casa na cidade e tanto insistiu que convenceu nosso Pai a comprar uma casa antiga, estilo tapera, mas melhor localizada e quase ao lado da casa da nossa avó materna, para onde nos mudamos em 1986, na avenida São Vicente, onde ela mora até hoje, na esquina com Rua Padre Vilaça.

Nessa casa, ela viu seus filhos crescerem, se formarem. Orgulhosa, me autorizou a iniciar o trabalho aos 14 anos no Banco do Brasil e teve que me deixar partir, poucos anos depois, para a “distante” cidade de Divinópolis, em 1991. Fui o primeiro a deixar de vez o ninho, sob muito choro. Na sequência, as outras filhas também começaram a trabalhar no Estado, como professoras, e Sávio, no Supermercado Fidelis e no Sicoob Credesp.

Casamentos, netos, tudo vindo aos poucos e trazendo para nossa Mãe a alegria de ser avó e bisavó, no seu lar, entre terços, orações e novenas, e uma televisão sempre ligada. Ela curte a vida tranquilamente, com o apoio e união dos seus irmãos, marido, filhos, netos e bisneto que a cada dia lhe trazem mais felicidade.

Poder de benzição

Cheia de amizades, sempre amável com as pessoas que a visitam, fornecendo cestas básicas a quem delas necessita, um ser humano especial que não mede esforços para ajudar o próximo. Mãe foi dotada do poder, por tradição familiar, da benzição de osso rangido, espinhela caída, cobreiro, torcicolos e mau-olhado, como ela mesma dizia a quem a procurasse para tais fins, alinhavando um pano com a agulha ‒ “assim mesmo eu coso”‒ e, pasmem, curando rapidinho o problema.

Hoje, tratando da diabetes e suas limitações de saúde, vive o momento pandêmico e suas consequências, que lhe impede de ir e vir como bem gostaria, de realizar compras no supermercado, frequentar as feiras, igrejas e aos poucos tenta se adaptar, contando com o apoio dos filhos e da Cleia, Pai e Dona, sua fiel escudeira. No coração e na alma cultiva a liberdade dos sonhos de realizar ainda muitas viagens a Aparecida do Norte, visitas às amigas inseparáveis Haidê e Dalva, bailar com os netos mais jovens, Enrico e Sofia e seu recém-chegado bisneto Lucca, ao som de forró bem alto e viver muito para ver todos nós chegarmos e enchermos a sua casa de mais vida e alegria.

Esta história foi composta coletivamente pelos filhos Sílvia, Samira e Vander, desde dezembro de 2021 e escrita e atualizada por mim, homenageando uma vida repleta de superações, aprendizados e amor, neste início de 2024, como símbolo do início de tudo na vida: a maternidade.

Foto do alto

Atrás, da esquerda para a direita, estão Michelle (esposa de Sávio), Sávio (com os filhos Sofia e Enrico no colo), João Bento, Samira, Vander e Vinícius (filho de Samira); na frente estão Ciuslene, Sílvia e Celma. (Vander André Araújo é advogado, filósofo e escritor / Fotos: Arquivo da família).

 

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