“Eu pensei que todo mundo fosse filho de papai Noel”

 

VANDER ANDRÉ – A letra dessa música, entoada com frequência nesta época, não é nem um pouco alegre. Há quase um século, o compositor baiano, Assis Valente, também autor de “Cai, Cai, Balão”, a criou como uma melodia natalina, narrando a expectativa de uma criança por um presente do imaginário Noel. Através de versos simples, Valente questionava onde a criança interior em cada um de nós poderia encontrar a tão almejada felicidade, deixando-nos com a dúvida cruel: se todos são filhos de Deus, por que nem todos seriam filhos de Papai Noel?

Diante da realidade nua e crua que testemunho nesta cidade do Centro-Oeste mineiro, sob o calor acentuado pelo El Niño, que eleva a sensação térmica acima dos 35 graus nesta primavera-verão, acredito que não podemos todos ser filhos desse simpático Papai Noel que, na fantasia infantil, chega dirigindo o seu trenó, surfando em mais uma onda de calor tropical.

O personagem natalino, ocasionalmente assumindo a função paterna, ora veste-se de vermelho, ora em trajes de inverno com cores diversas e estranhas ao seu modelo original, ditado pelas modas vigentes e atendendo interesses de quem vê nelas uma ameaça ao status quo – algo surpreendente, para dizer o mínimo – e às críticas dos pais que aguardam, incansavelmente na fila por uma foto ao seu lado.

Diante das telas da TV aberta, assistimos, extasiados, cenas de repetidos filmes, com alguns poucos privilegiados no hemisfério norte, recebendo as visitas desse bom velhinho, descendo pelas chaminés que expelem a fumaça nas lareiras das casas aquecidas, com seus telhados cobertos de neve. Às vezes penso que certamente “esqueceram de mim”. Ele chega, com sua tez rosácea e barba branca, em seu trenó puxado por renas, carregando um saco de presentes que custa a descer pela chaminé. E aqui, surge a pergunta: de onde ele veio e como chegou nos Trópicos, se isso fosse mesmo possível, considerando as várias investidas coloniais em nossa história pós-invasão de 1500?

Outros, já sob nosso olhar misericordioso e fraterno, enfrentam noites nada felizes, especialmente durante as chuvas intensas e alagamentos, conforme exibido nos jornais sensacionalistas que chegam até nós. Nessas ocasiões, nos comovemos com suas frenéticas buscas por apoio para cobrir tetos com lonas pretas ou repor o amianto que foi levado para longe do seu local original, organizando campanhas de arrecadação de donativos, bazares e mais para aliviar a dor dos irmãos necessitados, quando praticamos com mais afinco valores cristãos como a caridade.

Aqui, em terras bom-despachenses, a história não é tão diferente. Alguns anos, enfrentamos chuvas torrenciais que forçam a mudança dos planos para o local das nossas reuniões familiares nos quintais na casa dos avós, transformando-as em apertadas festas indoor. Em outros, o calor sob um sol escaldante faz nossa noite feliz transpirar, causando agitação, e o consumo exagerado de água que passarinho não bebe eleva o tom das conversas, dando início às confusões.

Nessas horas, ansiamos pela meia-noite para as orações de costume, a missa do galo e finalmente servir a ceia com pratos exóticos, recheados com chester, peru, pernil assado, frutas e farofas com uvas passas e outras opções que só servem para essa noite específica, reservando um pouco para o almoço no dia seguinte, quando é possível compartilhar o famoso “restô dontê”.

Perto dali, outros contemplam suas árvores de Natal com luzes pisca-pisca chinesas e experimentam o panetone recebido dos patrões, com um tapinha nas costas, tentando incrementar a própria janta, explorando o que há de melhor na cesta um pouco mais recheada que a básica recebida neste período, acompanhada do tradicional vinho doce, guardando a Sidra para a noite de réveillon.

Nos dias que antecedem a festa do nascimento do Menino, alguns mantêm a tradição de trocar presentes e com um pouco do décimo-terceiro nas mãos, saem nas ruas da cidade, de olho nas ofertas, dando mais vida a um comércio tradicional, que já não se concentra mais na Praça da Matriz, em busca do presente ideal para o amigo oculto e os parentes bem-conhecidos.

O Governo Municipal não quer ficar de fora da festa e se esmera em iluminar árvores de algumas praças, recebendo elogios de uns, “vandalismo” de outros enquanto alguns moradores, que se sentem desassistidos nas regiões mais distantes do centro, decoram suas próprias áreas, com luzes coloridas, como a que pudemos ver recentemente no vídeo que viralizou na rede social mostrando a rua Xavantes, onde também eles aguardam, ansiosos, a chegada do Papai Noel.

Em um ano em que as famílias ainda estão divididas e discutem as razões da polarização política recente, cabe a nós redescobrir que temos uma vida para buscar o nosso presente, aquele que se revela diariamente à nossa frente, exigindo coragem na expectativa de um futuro melhor e mais justo para todas e todos. Que os Papais do céu e da terra, para alguns, o Noel, nos mostrem que a felicidade não é apenas uma “brincadeira de papel”.  (Vander André Araújo é advogado, filósofo e escritor / Foto ilustrativa)

 

4 thoughts on ““Eu pensei que todo mundo fosse filho de papai Noel”

  • 25 de dezembro de 2023 em 07:22
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    Já passa da hora de fazermos uma revolução cultural, começando por agradecer ao bom velhinho de roupas quentes e mandá-lo de volta ao hemisfério norte. Estamos precisando mesmo é de um velhinho que procure colocar comida na casa de todos, com mais geração de trabalho e renda. Precisamos, como bem lembrado no texto, mais obras para evitar enchentes, para que todos tenham todas as noites felizes e seguras. Precisamos trocar o chester de alguns pelo frango com quiabo para todos. Necessitamos ainda mais educação, saúde e lazer para todos nós. E quando essa revolução ocorrer, aí sim teremos, finalmente, aprendido o que Ele veio nos ensinar. Aí, sim, teremos uma noite realmente feliz.

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  • 27 de dezembro de 2023 em 08:44
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    Que bom que o texto te tocou, Maria das Neves! Obrigado pela gentileza do comentário! Concordo com você! Tomara que a gente consiga realizar nossos desejos brevemente! E que tenhamos o “frango com quiabo para todos e todas” !

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  • 27 de dezembro de 2023 em 18:03
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    Há anos que bani papai noel da vida dos q me rodeiam! Inclusive mha neta! As crianças pedem presentes q fogem da realidade que vivem,isto dói,frustra,pois o “papai Noel “não atende ,enqto atende as crianças q os pais podem comprar!

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    • 27 de dezembro de 2023 em 22:10
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      Pois é, Delciene! Que bom que você leu o texto e ele te proporcionou reflexões como essa! Obrigado por compartilhar conosco as suas ideias a respeito!

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