Pérola: o filme de um aconchego familiar

A sensação de “aconchego” familiar que a personagem principal construiu em seu microcosmo (…), nos anos 80, me fez relembrar dos momentos que vivi até minha adolescência em Bom Despacho/MG. Coincidentemente, na mesma época em que a história se desenrola na tela.

VANDER ANDRÉ – Diante das inúmeras adversidades da vida, que não são poucas, Pérola emerge, neste mais recente filme de Murilo Benício, baseado na obra do dramaturgo Mauro Rasi, atualmente em exibição nos cinemas da capital, como uma figura feminina de notável força, brilho, audácia e otimismo. Ela é capaz de encontrar humor mesmo nas situações mais desafiadoras, transformando o limão num limão com nada, como apenas nossas mães sabem fazer. 

Foi a sensação de “aconchego” familiar que a personagem principal construiu em seu microcosmo na pequena cidade paulista de Bauru, nos anos 80, que me fez relembrar dos momentos que vivi até minha adolescência em Bom Despacho. 

Coincidentemente, na mesma época em que a história se desenrola na tela.

Consegui fazer várias conexões com minhas próprias experiências no interior de Minas, onde cresci em um ambiente familiar grande e acolhedor. Muitas vezes, essa estrutura familiar protetora me impedia de tomar decisões mais ousadas na vida, aventurar-me por esse mundão afora, em busca dos meus sonhos. Eu ficava ali, quietinho, repetindo a história da tradicional família mineira, conservando valores de gerações.

Muitos pais e mães em Bom Despacho também sonhavam (e ainda sonham) que seus filhos se formem em profissões tradicionais, como medicina e direito, coloquem um anel de pedra vermelha no dedo e se intitulem doutor, ignorando alguns dos desejos juvenis de se dedicar às artes, à cultura, à literatura. Infelizmente, essas carreiras, muitas vezes, não são vistas como promissoras em termos financeiros: “poesia não dá dinheiro”, como é dito no filme… 

Talvez seja a pressão pelo sucesso imediato que nos leva a abrir mão dos nossos talentos pessoais, renunciando a carreiras artísticas promissoras, para abraçar profissões burocráticas, estáveis e financeiramente gratificantes, como o serviço público, por exemplo. 

Mas, voltemos ao filme: Pérola, ou Drica Moraes, uma atriz que se entrega totalmente ao papel, se revela não apenas como a líder do casal, mas como a matriarca inquestionável de uma família de classe média branca no interior de São Paulo, com dois filhos. Sua mãe convalesce num quarto fechado, uma presença naquela casa que constantemente anuncia a sua própria morte. Não podemos analisar a feição de quem, a contragosto e sob pressão, permanece viva, impedindo que a frente da casa seja expandida, alcançando os tão desejados quatorze metros. 

O novo lar da família de Pérola é promissor e ela, como um visionário JK, planeja e verbaliza incessantemente seu projeto de 60 anos em 5. Vislumbra a sua mansão com uma piscina, celebra a chegada da antena da sua TV em cores, um luxo raro na cidade naquela época, simbolizando a sua mudança de status e a concretização dos seus ideais de um futuro bom.

Nesse novo espaço familiar, construído gradualmente e sem pressa, ela recebe amigos e irmãs e continua sendo e tomando “caipirinha”, realçando o sotaque característico e apreciando um dos mais de 50 coquetéis, a especialidade de um marido docilmente embriagado, alheio, diminuído no seu papel tradicional de macho provedor. 

As festas à beira da piscina, quando Pérola surge como uma espécie de pin-up, lembram cenas do filme “E se vivêssemos todos juntos?” (Robelin, 2012), mas neste encontramos vizinhas e tias desferindo seus frequentes comentários maldosos e invasivos, denunciando a inimizade e uma certa inveja daquela alegria representada por Pérola. 

No entanto, é na comemoração na orla do Rio que testemunhamos o encontro dos pais com o filho e seu parceiro. Como a personagem de Clarice Lispector, Lóri, Pérola também se recusa a encarar a dor de uma realidade diversa dos seus sonhos, reprimindo qualquer outro sentimento que fuja aos seus planos de uma vida feliz para todos os seus entes queridos, ela quer apenas enxergar o brilho das estrelas nas águas do mar. 

No entanto, Pérola não está sozinha na sua jornada, mesmo tentando esquecer uma das personagens daquele encontro mágico, adotando a ingênua estratégia de dobrar o canto da foto, cortando-o do registro fotográfico, para o porta-retrato, apenas por não querer enxergar a dura realidade da vida. Aos poucos ela passa a perceber que o “mar salgado não é sozinho porque é salgado e grande…”. Isto tudo é bastante diferente da sua piscina de água doce, limpa, limitada, clorada, comezinha, sem conflitos, onde ela se “aconchega”. 

Sua vela se apaga justamente aos 60 anos e é nesse momento, sem choro nem vela, nem reza, que passamos a conhecer melhor o seu filho Mauro, o poeta, brilhantemente interpretado pelo ator mineiro Leonardo Fernandes. Ele sonha com muito mais para sua vida e, parodiando Djavan, a mãe viaja em si, na pequena Bauru dos anos 1980 e ele almeja o oceano, onde não mais dará “pérola aos porcos”. 

Com as costas viradas para quem o assiste, de frente para o mar carioca, Mauro começa a anunciar as suas memórias, abordando a presença doce e ao mesmo tempo incômoda da sua mãe no interior, onde se achava um ser deslocado, assim como as limitações impostas por uma vida burguesa aparentemente vazia de sentido.

Apesar de ter saído de Bauru, a “cidade” continuará presente na sua essência, permanecendo latente no seu jeito de ser e encarar a vida. Não traz consigo o anel com a pedra rubi que sua mãe predestinava, mas ele escreve, apesar de todos avisarem que “poesia não dá dinheiro”. 

Em um emocionante encontro final com a sua mãe, quando a morte silencia e põe fim ao dinamismo e a alegria de Pérola naquela casa, Mauro confirma que ela agora pode nadar serenamente naquela piscina, uma vez que a água está limpa e ela já não precisa mais se esconder na sua concha, protegendo-se dos intrusos externos. É nesse momento que assistimos ao surgimento de uma figura semelhante a Vênus, como na obra de Boticcelli, e nosso coração se enche de esperança, diante dessa transformação artística que, como sabemos, é capaz de nos salvar. 

(Vander André Araújo é advogado, filósofo e escritor / Foto: Divulgação)

3 thoughts on “Pérola: o filme de um aconchego familiar

  • 20 de outubro de 2023 em 17:22
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    A sétima arte encanta, escancara e salva!!! Sua reflexão é profunda, como sua veia poética!!! Realmente: o “mar salgado não é sozinho porque é salgado e grande…”. Isto tudo é bastante diferente da sua piscina de água doce, limpa, limitada, clorada, comezinha, sem conflitos, onde ela se “aconchega”.” Que enfrentemos o mar bravia com poesia!

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  • 21 de outubro de 2023 em 07:54
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    Sou aciduo leitor do jornal de negócios desde sua criação, principalmente porque vivi um período fora de Bom Despacho, e desta forma, buscava no formato digital, estar em dia com as notícias. Sei que é um jornal familiar, com a maioria de seus conteúdos, relatados por seus colunistas, de forma a resgatar a excencia vivida no aconchego dos lares, vielas, ruas e bares. Bonito e charmoso até, mas precisamos olhar a frente, buscar novos horizontes com conteúdos a acrescentar portas abertas para quem está chegando, oportunidades de mudanças, relembrar é maravilhoso, mas acomoda. Conciliar o passado com perspectivas futuras é o que nos falta

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  • 21 de outubro de 2023 em 17:03
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    Com essa análise tão bem embasada, tenho vontade de ir agora assistir ao filme e resgatar da mesma forma o meu passado. Precisamos também valorizar o cinema nacional, principalmente nesta nova fase, em que a cultura volta a fazer parte das nossas vidas. Obrigada pela dica.

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