O cheiro do Conjolo de Vissunga

 

VANDER ANDRÉ ARAÚJO – Minha mãe é servidora pública municipal aposentada da Prefeitura de Bom Despacho. Acompanhei parte da sua dedicação ao trabalho e, desse período, as memórias mais vívidas me vêm do olfato. Isso poderá fazer algum sentido quando você concluir a leitura deste texto.

No final da década de 70, quando eu tinha lá meus cinco anos, ela conduzia, com energia e disposição, as atividades de sala de aula multisseriada numa escola rural. Eu seguia o caminho junto dela na estrada de terra. Ia a tiracolo, atravessando o córrego que fazia limite com a propriedade do seu Dirico, por uns quatro quilômetros, até chegar naquela casinha da Fazenda da Prata.

Sabores inesquecíveis

Além do material didático, a professora levava consigo a merenda que ela mesma preparava para os alunos: arroz doce com leite fresquinho, cravo, canela e… flor de laranjeira! Em outra ocasião, mingau de milho verde, ou uma sopa com os legumes da horta, quitandas feitas no forno de barro limpo com vassoura de alecrim. De sobremesa, manga, jabuticaba ou laranja, dependendo da época.

Aromas não faltaram, cheiros e sabores inesquecíveis e, nas suas aulas, as amorosas lições de ler, escrever, dividir, somar e multiplicar, para crianças das mais diversas idades, naquele tempo de carências e falta de recursos governamentais dedicados à educação infantil.

Lembranças do passado

Quando meu irmão mais novo nasceu, em 1977, deixamos a roça e nos mudamos para a cidade. Ela foi “promovida”, se assim pudermos considerar, a uma função burocrática na sede da Prefeitura, localizada na sobreloja de onde funcionavam o bar do seu Gercino e o tradicional Armarinho Paula, onde agora há uma galeria com diversas lojas, na praça da Matriz.

Mãe passou a se vestir de forma fina, executiva, exigências do local, queria andar na “moda” da cidade. Fazia permanente no cabelo, encaracolando-o, num processo químico que deixava, por alguns dias, cheiro de formol por onde ela passava.

Passei a perceber naquela repartição, quando ia visitá-la depois da aula no grupo escolar, lembranças do passado. Odores de livros velhos e papéis guardados em arquivos de aço, imensos para o meu olhar curioso, mesas de madeira antigas, com suas máquinas datilográficas, piso lustrado diariamente, com cera parquetina.

A servidora contava histórias cujos personagens eram Antônio Leite (o prefeito), Simão, Dácio, Manon, Célio Luquini e outros colegas daquela repartição pública. Nelas, havia enredos de problemas com verbas públicas, ficha de cadastro, folha de pagamento, férias, aposentadorias, dilemas do RH.

Conjolo de Vissunga

Há alguns meses, retornei à Prefeitura de Bom Despacho, agora localizada num espaço denominado Conjolo de Vissunga (isso mesmo, Casa de Cultura na língua da Tabatinga), como voluntário e representante da sociedade civil (literatura).

Fui convidado para mais uma reunião do importante e necessário Conselho Municipal de Políticas Culturais, que conta com representantes dos diversos segmentos da sociedade. A participação nele é fundamental, ainda mais agora que conseguimos recursos da Lei Paulo Gustavo e quase meio milhão de reais serão destinados a Bom Despacho para apoio aos projetos culturais. Para tanto, audiências públicas são realizadas na Câmara para explicar o funcionamento da Lei e ouvir sugestões dos cidadãos.

Naquela ocasião, ouvi de amigos uma expressão bem mineira, que me deixou encucado, me levando a refletir sobre o que me levara novamente até ali, anos mais tarde: “o que você foi cheirar lá”?

Isso mesmo, novamente o cheiro, a capacidade de perceber e reagir, por meio dos sentidos, o que havia naquele espaço. Um Conjolo que tanto pode mudar o dia a dia das pessoas na comunidade, pois é lá que se encontram os responsáveis por aplicar o nosso dinheiro em benefício da população.

Sim, precisamos direcionar não somente o nosso olfato e olhar para aquilo que nos interessa. Aquele Conjolo é a nossa casa, os recursos são públicos, portanto, nossos. O que vai ser feito com eles é da nossa conta e precisamos ir lá “cheirar”. (Portal iBOM / Vander André Araújo é advogado, filósofo e escritor / Foto: Vista interna do Conjolo de Vissunga, sede da Prefeitura de BD / Arquivo Sesc).

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *