Padre Tiãozinho: a Sua palavra não passará
LÚCIO EMÍLIO JÚNIOR – As pandemias nunca foram novidade na história da humanidade. A peste negra da Idade Média era uma referência distante, em livros didáticos, até que vimos de perto esse drama com a pandemia de Aids que levou tantos artistas tais como a atriz Sandra Bréa, o escritor Caio Fernando Abreu, dentre outros.
A obra de padre Sebastião ainda está para ser estudada em livro, preferencialmente. Ela é extensa. Inclui desde sua infância em Japaraíba ao trabalho de São Vicente na Vila Militar. Fica aí a dica de um estudo biográfico mais amplo. Essa coluna será somente uma humilde e limitada crônica.
O pesadelo voltou com a Covid 19 e agora parece que, como na canção de David Bowie, “todos os pesadelos chegaram ontem e estão aqui para ficar”: crise econômica desde 2008, ataques de atiradores neonazistas em escolas, bem como a possibilidade, como disse o biólogo Atila Iamarino, de ficarmos nesse abre e fecha eternamente, de agora em diante, com a chegada de uma pandemia a cada dois anos.
Diante desse horizonte sombrio, vale lembrar do sorriso e da pessoa radiante, alegre, abençoada de Padre Tiãozinho. Eu o conheci quando meu pai levou ao encontro do nosso querido padre a ex-mulher de um amigo de meu pai. Não sei se os desgostos da separação influenciaram. Na época, impressionou-me o sofrimento daquela mulher. Parecia algo irreal. E foi padre Tiãzinho que a acolheu num momento difícil daqueles. De longe, imaginei como era difícil acolher uma alma que precisava tanto ser ouvida como aquela, pois era alguém cuja fala abundante não seria qualquer um que poderia atender. E pareceu-me que Tiãozinho era um bálsamo para ela. Nesse episódio eu já soube tratar-se de um homem extraordinário.
Muitos anos depois, quando eu vim morar em Bom Despacho, dar aulas na então UNIPAC, uma pessoa próxima a mim narrou que Tiãzinho também tinha feito esse mesmo papel semelhante junto a ela, em um momento de sofrimento, tendo sido abandonada pelo companheiro e ficado desamparada com um filho para criar. Contou-me que estava desiludida com a igreja, tinha conversado com vários padres e eles não tinham sido compreensivos com seu drama, bem como sua família, tendo até sido dispensada por um deles de ir à igreja. Foi somente padre Sebastião quem a acolheu e ouviu seu grito mudo, seu sofrimento.
Tiãozinho era incrivelmente ocupado, passou a atender outras cidades da região Centro-Oeste a partir de um determinado período, não só a vila militar. Suas obrigações tinham se multiplicado, mas lembro-me de tê-lo visitado para conversar algumas vezes, em ocasiões mais felizes. Eu levava peixe de presente, ele gostava muito de pratos à base desse alimento. Eu cheguei a ver que ele lia a revista Caros Amigos, agora extinta, revista de esquerda, embora ele vivesse praticamente dentro de um quartel. Igualmente causou-me muita impressão quando eu o ouvi comentar, em um curso que lecionou para mim e para um grupo, que não há como negar que a força que nos move é a sexualidade e que ele concordava com a Psicologia.
Achei-o ousado quando ele falou que fez uma pesquisa de campo em uma cadeia nos tempos de estudante. Procurou criminosos e perguntou-lhes se tinham sido batizados, quem eram os padrinhos, se acreditavam em Deus, etc. E chegou à conclusão de que não cometiam crimes “por falta de Deus no coração”. O fato de terem tido contato com a religiosidade não funcionou de forma eficiente como salvaguarda para que não cometessem crimes, concluiu ele em sua pesquisa. Imagino que essa pesquisa possa ter causado perplexidade em quem a avaliou.
Ao conversar com Tiãozinho, que lecionava Ética na Academia de Polícia Militar, fiquei muito feliz ao encontrar um dos livros de meu pai na lista das leituras recomendadas aos seus alunos. Curiosamente, eu também lecionava Ética na UNIPAC naquela mesma época. Eu e Tiãzinho rimos muito das coincidências, ficamos amigos. Ele sempre gostava de contar que teve dificuldades com latim no seminário e meu pai ajudou-o muitíssimo. Era eternamente grato.
Ao comentar o fato com Cássia, esposa do coronel Adair, que foram as últimas pessoas a acompanharem padre Tiãozinho antes dele ser entubado, Cássia revelou-me que já tinha escutado inúmeros outros relatos assim. Minha amiga professora e advogada Janaína Lucas disse-me sentir muita saudade de Tiãozinho ao passar pela vila militar.
E também devemos dar graças aos discípulos deixados por padre Sebastião: a obra deixada por ele na vila militar foi levada adiante e terminada graças à atuação do coronel Adair e de sua esposa Cássia, bem como do empenho de toda a comunidade.
Ao pensar em Tiãozinho, a memória me traz outros de meus mortos: Alessandro Jordão, da Jordão Financeira, meu ex-aluno, que morreu também de Covid e deixou cinco filhos órfãos. Anastácia, minha aluna de serviço social, também cronista, também morta na pandemia. É tão triste pensar na morte desse homem santo que é preciso recorrer ao romancista Lúcio Cardoso: devemos pensar que Deus é infinito, incompreensível, intenso como um canteiro de violetas que nunca para de florescer, como disse esse escritor. É triste como pensar, por exemplo, na crônica de Dilermando que conta que a senhora Dora Kohnert, ao ser presa injustamente por lutar por creches para as crianças da cidade, manteve, no caminhão que a levou por Bom Despacho, a cabeça erguida o tempo todo.
Padre Tiãozinho, presente! Dora Kohnert, presente! Jordão, Anastácia, não morreram de todo, presentes! Cabeça erguida, sempre! (Portal iBOM – Foto Arquivo)