De Lourdes a Fátima pelo Caminho de Santiago
Perde-se na névoa da história o início das peregrinações, mas é certo que se trata de ritual muito antigo. No Velho Testamento encontramos referências às andanças dos judeus desde Abraão até o Êxodo. Jesus Cristo peregrinou pela Palestina e por lugares não sabidos. Buda peregrinou pelos vastos territórios da Índia em busca de iluminação e paz espiritual. Os muçulmanos fazem sua peregrinação a Meca. Contudo, foi na idade média que os cristãos tornaram as peregrinações um ritual religioso popular. Tudo começou com as viagens à Terra Santa, mas logo Roma se tornou destino também. A peregrinação é uma busca por consolo, união com Deus, salvação, fortalecimento do espírito e busca interior.
As peregrinações cristãs começaram quando os apóstolos de Cristo saíram a evangelizar os gentios. Vem daí a palavra peregrino, que significa aquele que anda por terras estrangeiras. Depois a tradição se estendeu e se firmou quando os europeus partiram em busca da Terra Santa, percorrendo caminhos antigos da Turquia, Palestina, Judeia.
Quando os peregrinos iam a Roma, recebiam o nome de romeiros.
Os muçulmanos acreditam que as peregrinações a Meca começaram no tempo de Abraão, portanto, seis mil anos antes de Maomé. O certo é que, desde Maomé, todo muçulmano que tem os meios necessários e goza de boa saúde tem obrigação de visitar Meca e tocar a Caaba pelo menos uma vez na vida.
Estas peregrinações eram feitas a pé, algumas vezes a cavalo ou em carros de boi. Hoje costumam ser feitas de avião, ônibus, carro. A forma antiga, a pé, com duração de meses e até anos, praticamente desapareceu. Mas há um destino que ainda se faz a pé e seguindo antigas tradições: é o Caminho de Santiago, na Espanha.
A história do Caminho de Santiago é rica e envolta em mistérios. Ela começou quando Jesus Cristo convidou Tiago e seu irmão João para deixarem suas redes de pescador e se juntarem a ele para pescar almas. Mais tarde João ficou conhecido como São João Evangelista e Tiago ficou conhecido como Santiago.
Depois que Cristo morreu, Tiago foi pregar o evangelho entre romanos e antigos povos da Hispânia (Portugal e Espanha). Mas, avisado de que a morte da Virgem Maria se aproximava, voltou a Jerusalém para visitá-la. Lá chegando, foi capturado por Herodes Agripa e decapitado. Um dos seus discípulos recuperou seu corpo e o levou de volta para a Hispânia. Ele foi enterrado num lugar que os romanos chamavam de Campus Stellae — ou seja, Campo das Estrelas. Os galegos, povo da região que não falava bem o latim, pronunciavam Compostela.
Seis séculos depois da morte de Santiago, os mouros dominaram a Hispânia. Somente manteve a independência um pequeno bando de cristãos que viviam no extremo norte e noroeste da Hispânia. Ao longo de sua luta pela reconquista de suas terras, ganharam um aliado poderoso: nas batalhas sangrentas, Santiago aparecia montado num cavalo branco e combatia ao lado dos exércitos cristãos. Por isto ganhou o apelido de Matamouros. Santiago Matamouros. Com esta ajuda poderosa os cristãos foram vencendo os mouros e empurrando-os de volta para a África.
Mas, muito antes da vitória final (que levou séculos!) o rei Afonso II, o Casto, fez uma peregrinação de Oviedo até a tumba de Santiago. Queria agradecer a ajuda do Matamouros. Ali nasceu o Caminho de Santiago.
Seguindo o exemplo de Afonso II, católicos de toda a Europa afluíam. Primeiro, futuros portugueses e espanhóis; depois os franceses e outros povos europeus.
A rota usada por Afonso II ainda é percorrida por milhares de peregrinos que querem fazer o Caminho Primitivo — como ficou conhecido. Este caminho foi estendido até os Pirineus, na França, numa rota conhecida como Caminho Francês. Mais tarde, com a reconquista dos territórios que se tornariam Espanha e Portugal, várias outras rotas foram estabelecidas. Hoje são quase 300. Mas os mais famosos são o Caminho Primitivo, com 300 quilômetros e o Caminho Francês, com 772 quilômetros. Mas, para muitos, há ainda outro trecho de pouco mais de 100 quilômetros que vai de Compostela até Finisterra, um vilarejo espanhol beijado pelo Oceano Atlântico.
Lourdes
No século XIX uma francesinha de apenas 14 anos relatou 18 encontros com a Virgem Maria. Posteriormente ela foi canonizada como Santa Bernadete e a Virgem Maria recebeu o cognome de Nossa Senhora de Lourdes. Sua fama de protetora dos enfermos correu o mundo e a gruta de Nossa Senhora de Lourdes tornou-se destino de oito milhões de peregrinos a cada ano.
Fátima
Na cidade portuguesa de Fátima, em 13 de maio de 1917 o pastorzinho Jacinto e as pastorinhas Lúcia e Jacinta presenciaram o aparecimento da Virgem Maria no local conhecido como Cova da Iria. Desde então, Fátima é destino da peregrinação de católicos do mundo inteiro. A cada ano cerca de 6 milhões de pessoas visitam o local da aparição.
Minha peregrinação
Em 1969 – eu tinha17 anos – pude visitar Fátima e Lourdes. Dos dois lugares eu trouxe para minhas avós e para minha mãe lembranças que elas guardaram com muito carinho até o final de suas vidas: imagens de Nossa Senhora, terços, medalhas, broches, alguns enfeites. Todos alusivos à Virgem Maria.
Naquela viagem, do Brasil a Portugal e França fui de navio. Dos portos francês e português até Lourdes e Fátima, fui de ônibus.
Pois bem; já são quase 55 anos desde que fiz aquelas visitas na minha juventude. Agora tive vontade de voltar. Daí me surgiu uma estranha inspiração. Lourdes e Fátima estão ligadas pelo Caminho de Santiago. Afinal, o início do Caminho Francês está na cidade de San-Jean-Pied-de-Port, que fica a pouco mais de 120 quilômetros de Lourdes.
Do outro lado, o Caminho Português nasce em Lisboa e passa ao lado de Fátima.
A juntada destes dois caminhos, com passagem por Finisterra cobre os três principais e maiores Caminhos de Santiago. São 1.402 quilômetros que passam por monumentos da história europeia, por marcos do refluxo muçulmano e da expansão do cristianismo na Europa. Para muitos é também uma rota de liberação do espírito e de conquista da mente sobre o corpo.
É este o caminho que quero fazer dentro de dois ou três meses. À moda antiga: a pé, levando apenas uma cabaça d’água, alguns víveres, uma muda de roupa e o apoio de um cajado. É um sonho que acalento agora. Para realizá-lo, nesta quinta-feira (15/12) embarcarei para Portugal. Vamos ver como me saio na realização deste sonho.
Levo comigo, também, estas palavras de Guimarães Rosa: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia.
É com esta convicção que espero palmilhar o estranho Caminho de Santiago.
Cabral, você quer virar Santo?! São Cabral das Minas Gerais!