O Caos e o Logos

Para os gregos antigos, antes de o mundo existir, havia o caos — um estado de completa desordem e confusão. Do caos nasceram os elementos que formaram o universo: ar, água, fogo e terra. Estes elementos se organizaram e formaram o logos — ou seja, a ordem e a harmonia. Milênios depois do nascimento e desaparecimento dos mitos gregos nós ainda chamamos de caos aquilo que nos parece confuso, bagunçado, desarrumado. É o que estamos vivendo com as mudanças climáticas e com a pandemia da covid-19, causada pelo vírus SARS-CoV-2.

 

A Covid-19

Epidemias evoluem em ondas. Elas crescem e diminuem e com o tempo, vão-se amortecendo. Os picos vão ficando menores e mais espaçados. Superada a epidemia, algumas doenças desaparecem; outras se tornam sazonais. Há também aquelas que reaparecem em surtos.

A humanidade já viveu isto muitas vezes com doenças como sarampo, varíola, catapora, rubéola, poliomielite, doença do pé, mão e boca, hepatite, coqueluche, tuberculose, ebola, peste bubônica. A varíola, por exemplo, foi erradicada; a poliomielite quase desapareceu; a gripe virou sazonal e nos visita todos os anos.

A evolução de cada doença contagiosa é determinada pela combinação de causas diversas, como vacinação, descoberta de tratamentos, desenvolvimento de imunidade natural, alterações ambientais, mudança de comportamento das pessoas.

A Covid-19 tem surpreendido os cientistas pela sucessão de picos crescentes – o que difere do comportamento esperado das epidemias. No Brasil, por exemplo, foram 55.891 casos em 23 de julho de 2020; 87.376 em 25 de março de 2021 e 157.393 em 20 de janeiro de 2022. Este último pico mostra a virulência da variante mais recente do vírus, a ômicron. Observa-se um crescimento de 11.000% entre 17 de dezembro de 2021 (1.419 casos) e 20 de janeiro de 2022 (157.393 casos). Isto representa média de 15% ao dia. No último mês, em São Paulo, o crescimento foi de 26% ao dia — ou 65.375% ao mês!)

Alguns cientistas acreditam que esta variante (ômicron) causa menos hospitalização e menos morte do que a variante anterior (delta). No entanto, muitos afirmam que a mortalidade menor não se deve ao enfraquecimento do vírus, mas sim à vacinação. Tanto que os agravos são menores exatamente entre as faixas etárias e categorias que já receberam a dose de reforço.

As doenças viróticas normalmente podem ser prevenidas ou atenuadas com vacinas. É o caso do sarampo, catapora, varíola, varicela, hepatite C, HPV, poliomielite, gripe. No entanto, não há tratamento eficaz e específico para viroses. Uma vez contraído o vírus, o doente deve combatê-lo principalmente com seu sistema imunológico. Os medicamentos são sintomáticos. Sabe-se que, na maioria dos casos, os medicamentos antiviróticos têm efeito muito pequeno e até nulo (há casos em que o efeito é positivo, embora não cure. É o caso do coquetel contra o HIV).

As doenças bacterianas, por outro lado, podem ser tratadas com antibióticos — desde que as bactérias sejam não resistentes. Contudo, os problemas aumentam quando se tenta tratar vírus com antibióticos ou com antimaláricos (hidroxicloroquina) ou vermicidas (ivermectina).

A despeito destes conhecimentos científicos consolidados, as redes sociais continuam divulgando boatos sobre tratamento da covid-19. Um dos destaques nesta linha foi Olavo de Carvalho, o mais conhecido astrólogo do bolsonarismo. Adepto das teorias conspiratórias, ele afirmava que a terra é plana, que o Príncipe Charles, da Inglaterra, é muçulmano, que Barack Obama não era americano. Quanto à covid-19, dizia que a doença não existia e que ninguém deveria se preocupar com ela. Criticava o uso da vacina. Ele acabou morrendo de covid no dia 24 de janeiro passado, após ser internado num hospital em Richmond, Virgínia, Estados Unidos.

O que mais surpreende não são os boatos nas redes sociais nem os terraplanistas que seguiam Olavo de Carvalho. O que mais surpreende é ver que o Ministério da Saúde, contrariando todos os órgãos de saúde do mundo — inclusive a brasileira ANVISA — prega o uso de vermicida, antibióticos e antimaláricos contra o SARS-CoV-2. Mais estranho ainda: diz que estes medicamentos têm efeito positivo comprovado, mas que as vacinas não têm. Vivemos tempos confusos e conturbados.

É o caos. Caos alimentado por boatos que circulam nas redes sociais, por astrólogos e por terraplanistas. Mas, principalmente, por órgãos do governo, como o Ministério da Saúde, que tem se afastado dos conhecimentos científicos e adotado teorias da conspiração.

No entanto, mesmo que desconsiderássemos estes promotores da cizânia entre brasileiros, ainda restaria o caos provocado pela simples existência da pandemia de covid. Sua presença gera desemprego, diminui a produção e a riqueza do país, sobrecarrega o sistema de saúde, aumenta enormemente o custo dos SUS, preocupa e entristece as famílias de mais de 24 milhões de doentes confirmados e mais de meio milhão de mortos.

Não é possível prever por quanto tempo ainda teremos que conviver com a epidemia. Podemos torcer para que a vacinação atinja mais gente e bloqueie seu espalhamento. Podemos torcer para que as variantes se tornem menos transmissíveis e menos letais. Podemos torcer para que nosso sistema imunológico aprenda a se defender melhor.

Mas, enquanto nossa torcida não fizer efeito, é bom praticar o que já aprendemos e sabemos que ajuda a minimizar os riscos e as consequências da doença e do caos que ela provoca: máscara, distanciamento social, higiene e vacina.

O Clima

Ao lado do caos provocado pela covid-19, estamos também vivendo o caos provocado pelas mudanças climáticas.

Mudanças periódicas no clima são comuns e já as conhecemos bem. Por exemplo, em ciclos curtos de dois, três, quatro anos, o Brasil convive com os fenômenos El Niño e La Niña. Eles nos trazem chuvas e secas de forma desequilibrada.

O planeta também convive com fenômenos que têm cíclos de séculos ou milênios. Por exemplo, as eras do gelo, que alteraram profundamente o clima e a vida na Terra.

No entanto, as mudanças climáticas que estamos vivendo hoje nem fazem parte dos ciclos curtos e limitados como o El Niño e La Niña, nem fazem parte dos ciclos de longo prazo, como as eras do gelo.

Não podemos pensar que é apenas mais uma sequência El Niño/La Niña porque os efeitos são muito mais abrangentes e profundos do que eles causam. Não podemos pensar que é apenas a continuação do aquecimento após a era do gelo, porque a velocidade dos acontecimentos é muito maior do que aconteceu nos ciclos naturais. Além disto, já era de se esperar um resfriamento — bem ao contrário do que está acontecendo.

O que estamos vivendo é uma profunda mudança climática produzida pelo aquecimento global provocado pela humanidade. Suas principais causas são conhecidas:

a) Queima de combustíveis fósseis (petróleo, carvão mineral, xisto, gás natural) com geração de CO2 (dióxido de carbono) muito acima da capacidade de reabsorção pelas plantas e pelos mares;

b) Criação de frango, porco e gado confinado com geração volumosa de CH4 (metano) liberado na atmosfera;

c) Desmatamento sem recomposição e queima de lenha com liberação de carbono.

O dióxido de carbono e o metano que se acumulam na atmosfera impedem a saída do calor e da luz da superfície terrestre. Com isto a temperatura sobe. Quando ela sobe, pouco que seja, derrete o gelo nos polos e no alto das montanhas. Em consequência a temperatura sobe mais ainda, pois a terra exposta converte luz em calor com muito mais eficiência do que o gelo. Ou seja, este é processo que vai se acelerando sozinho.

Em contrapartida, a água fria que vem do gelo que se desprende dos polos e das montanhas leva ao resfriamento de algumas partes dos oceanos e dos continentes. Isto explica porque o aquecimento global traz mais frio para algumas regiões. É o caos.

Este ano o Brasil está vivendo secas e altas temperaturas em estados como Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina. Ao mesmo tempo, estamos vendo chuvas torrenciais em estados como Bahia, Minas e Espírito Santo.

Em consequência deste destempero climático, o Brasil sofrerá grandes perdas na produção agrícola. Em Minas, por exemplo, o milho, o feijão e a soja estão apodrecendo debaixo d’água. No Rio Grande do Sul e no Paraná, eles estão sendo esturricados pelo calor e pela seca.

Por causa destes excessos extremos, em 2022 teremos menos alimentos. Como a produção será menor, os preços vão subir mais ainda. E vão subir também porque o transporte ficará mais caro, já que nossas estradas foram destruídas.

É o encontro do caos da covid-19 com o caos da mudança climática.

Há esperança

Para os gregos, depois do caos vem a ordem, o logos. Vamos torcer para que a humanidade seja capaz de tirar algumas lições do momento difícil que estamos vivendo. Talvez os governantes passem a pensar mais no futuro das pessoas do que no resultado das próximas eleições. Mas, para que isto aconteça, teremos que ter a colaboração de todos no combate aos boatos, nas medidas de prevenção, e nas ações necessárias para reverter o aquecimento global.

Para os gregos, o caos precedia o logos. Para o bem dos nossos filhos, oxalá seja assim para nós também!

Fernando Cabral

Fernando Cabral é licenciado em Ciências Biológicas, advogado, auditor federal e ex-prefeito de Bom Despacho

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