Crônica inédita de Paulo T. Campos
LÚCIO EMÍLIO JÚNIOR – No mês que passou, obtive junto a Júlio Campos, um dos componentes da banda Bone Machine citada na coluna “Olha o Grau, Imprensa Digital”, que saiu em dezembro, um conjunto de textos de seu pai, Paulo T. Campos, publicados originalmente em O Bom Despacho, jornal que circulou na cidade na década de 60. Como Júlio obteve também um texto inédito, resolvi publicá-lo aqui nessa coluna. Segue essa interessante contribuição logo abaixo:
A mulher e a estátua do poeta
“Era noite. A cidade de Salvador dormitava calmamente sob os raios meigos da lua cheia. Uma brisa fresca soprava do mar, envolvendo a terra com sua carícia suave e desalinhando os cabelos loiros de uma linda mulher, cujo passo altivo e elegante mostrava pertencer à casta das pessoas bafejadas pela felicidade e pela fortuna.
– Marta! Marta!..
Ela parou e procurou com os olhos deslumbrados aquela voz que a chamava pelo nome. Ficou indecisa. Tentou continuar mas…
– Martinha! Não temas; sou eu, eu…
Era incrível, a boca saía da boca da estátua! Da estátua do poeta!
Fez um tremendo esforço para fugir, porém estas palavras novamente a detiveram:
– Olhe, você também vai me abandonar! Venha dar-me um pouco de alívio. Olhos dilatados, passo titubeante, aquele vulto caminha como que atraído por um ímã poderoso, em direção do busto que a chamava. Um mistério poderoso, indecifrável, impregnava o ambiente como se aquilo tudo obedecesse a uma incognoscível vontade.
– Que queres de mim, ó gloriosa estátua?
– Gloriosa! …então não sabe o significado desta palavra. Fui poeta. Leguei a esta humanidade tão heterogênea, tão ingrata, todas as inspirações da minh´alma, todas as frutas do meu talento, todas as lágrimas da minha dor. E afinal, o que recebi? Nada, ou melhor, acusações, injúrias, como se fosse um louco! Louco! Antes ser louco do que poeta! Resolvi tomar, quando da escravidão, a defesa do negro, não para ter um tema para escrever, mas para realizar qualquer coisa que justificasse minha passagem efêmera pela face da Terra. Os fazendeiros, a população rural, como você sabe, não me perdoaram, a mim e a meus companheiros. Mas não desanimeis; pelo contrário, prossegui cada vez mais arrojado até que a morte veio dar-me assunto, arrancando-me deste mundo tão traiçoeiro.
– Mas agora, não vês o tamanho do teu triunfo? Perguntou Marta.
– Ora, menina, triunfo, glória, que são isso depois da morte? Só na vida essas coisas são invejadas, porque só nela temos carne, e a carne é sedenta de louros e prazeres. A alma, porém, somente quer a paz e o sossego. E que vale erigir monumentos e mais monumentos luxuosos, custosos, em louvor de um vate, se este, enquanto vivia, nada teve para incentivar a sua vida árdua?
– Servem para mostrar à posteridade teu talento genial.
– À posteridade! Não, não, mil vezes não! Então não sabe que poucas, pouquíssimas são as que compreendem a poesia. Os homens de hoje não se dão ao trabalho de buscar a beleza através da arte. A beleza física das mulheres, esta sim, tem a admiração de mais de meio mundo.
– E ela não é uma arte? Interrogou a mulher.
– Sim, respondeu o poeta, mas não criada pelos homens e sim por Deus.
– Não sei a que ponto queres chegar.
– Quero dizer que só vocês, mulheres e belas, tem uma existência luminosa, reverberando, em plena mocidade, o que há de mais adorável – a formosura. Vivem sempre cercadas de admiradores, recebendo a toda hora, palavras de elogios, gestos de amizade. Não têm a solidão, o tédio e as angústias do poeta, ao contrário: passam os dias sempre cheios de emoção. Conhecendo, de momento em momento, sensações novas.
– E achas nisto algo de grande, de eloquente? Insistiu Marta. Como é ilógico este teu pensamento! Como é mesquinho e passageiro o dote da beleza: dá-nos algumas horas de alegria em troca de longas horas de sofrimentos, ao passo que a tua glória e a de teus companheiros permanecerá indelével no cérebro de toda a humanidade. Assim que começamos a envelhecer os galanteios e os admiradores desaparecem como por encanto e, então, começamos a pedir a Deus para que a “piedade infinita do termo de todas as coisas nos recolha ao seio do esquecimento os restos inúteis de um destino sem epitáfio”.
É provável que este diálogo vivo e dramático tenha continuado ainda por muito tempo; eu, porém, não lhes posso afirmar tal coisa, porque acordei assombrado, alucinado, procurando, por toda parte, a Martinha linda e o poeta genial”.
Paulo Campos