A Covid e o homem da cobra

Idosos como eu hão de se lembrar do homem da cobra. Ele vinha periodicamente a Bom Despacho para vender curas milagrosas. Minha memória é fraca para algumas coisas, por isto não tenho certeza se era sempre o mesmo. Acho que não. Ora vinha um, ora vinham outros, mas o espetáculo era sempre igual: reuniam os sofredores das mais variadas doenças e vendiam seus frascos de cura milagrosa. Calo, cravo e impingem sumiam com um vidrinho do líquido poderoso. Cobreiro, erisipela e espinhela caída exigiam dois vidrinhos, mas o sucesso era igualmente garantido. Com aquele elixir maravilhoso do homem da cobra, qualquer doença, de qualquer nome e de qualquer origem podia ser tratada e curada. 

O homem da cobra se arranchava na Praça da Matriz, defronte onde hoje há uma lotérica. O chão de giz amarelo tinha uma esparsa cobertura de grama e muita poeira. A sombra, porém, era boa. Havia ali inúmeras e frondosas árvores de fícus. Um fícus da folha miúda. O ambiente era propício para quem queria fugir do calor ou conversar fiado vendo cavaleiros e carroças transitarem para lá e para cá de quando em vez.

Aquelas árvores não estão lá mais. Foram derrubadas. Deu nelas uma praga chamada “lacerdinha”. É um bichinho pequeno, de menos de um milímetro que os técnicos chamam de tripes. Mas o nome “lacerdinha” vinha a calhar. Era uma referência a Carlos Lacerda, ex-governador da antiga Guanabara.

Os lacerdinhas infestaram as árvores da Praça da Matriz. Ninguém mais tinha sossego. Nem na sombra das árvores, nem longe delas. O bicho tem asas. Quando um lacerdinha caía nos olhos de alguém, era um deus nos acuda. Incomodavam mais do que o Carlos Lacerda.

Com as árvores também se foram os lacerdinhas e as sombras.

Mas não estamos aqui para falar de entomologia e de política. No máximo, de herpetologia e panaceias, as curas miraculosas do homem da cobra.

Pois bem. Lá estava, sob a sombra de um fícus, o homem da cobra. Em volta dele, um círculo de matutos curiosos. Estrategicamente, o homem deixava a valise preta e puída semiaberta. Vez por outra, dava para ver que ela se mexia. Aquilo atiçava a curiosidade de todos. Os meninos – sempre mais afoitos – se aproximavam para observar melhor o que se passava dentro da bolsa.

O homem da cobra os admoestava de mentirinha e estimulava a curiosidade. A participação de todos ia aumentando e o homem começava a falar. E como falava!

Primeiro, alertava sobre os perigos daquela cobra venenosíssima (a coitada de uma sonolenta jiboia!). Aí emendava com uma lista de doenças que atormentam todos os mortais: verrugas, calos, cravos, erisipela, cobreiro, espinhela caída, sopro no coração, lombrigas, mordida de carrapato, amarelão, barriga d’água, berne, boqueira, brotoeja, curuba, frieira, pilara, dor de estambo, pereba, defruço, espinha, sardas… Tudo isto e muito mais finalmente tinha cura garantida: o elixir miraculoso do homem da cobra. Até fraqueza de homem o elixir curava.

Naquelas alturas a cobra já tinha saído da valise e os mais medrosos já tinham alargado a roda. Começava então o espetáculo da venda. O homem tirava alguns vidrinhos da mala e alertava que o estoque era pequeno. Quem demorasse a comprar ficaria sem. Era quando avançava o primeiro comprador e pedia dois vidrinhos. Atrás dele outro logo pedia um vidrinho. Sem demora um terceiro pedia uma dúzia de vidrinhos.

Aí o homem da cobra fazia uma pausa estratégica e dizia que não podia vender uma dúzia. O estoque era pequeno e ele precisava atender todo mundo. Por isto ia limitar a seis vidrinhos por freguês. Era um momento mágico no discurso do homem. Ninguém queria correr o risco de ficar sem remédio tão capaz. Ele mal conseguia entregar os pedidos e fazer o troco.

O que ninguém sabia era que os três ou quatro primeiros compradores eram combinados. O homem da cobra acertava a encenação com eles. O pagamento eram os vidrinhos que eles podiam levar de graça.

Foi esta forma espetacular de vender elixires milagrosos que deu origem à expressão “falar como o homem da cobra”. Como falava! Só a lista de doenças que o remédio podia curar já dava para falar meia hora sem parar.

Ao sair de Bom Despacho o homem da cobra seguia para Dores do Indaiá. Fazia um circuito. O elixir vinha da água da torneira mesmo. Ele colocava um pouco de açúcar caramelada, uma pitada de sal amargo e o remédio miraculoso estava pronto.

E muitos saravam!

Machado de Assis, em crônica de 1893, explicou o fenômeno destas curas:

Doenças, minha senhora, não se compram na botica, posto se agravem nela, alguma vez. A minha achou felizmente um boticário consciencioso, que, depois de me haver dado um vidro de remédio e o troco do dinheiro, disse-me com um gesto mais doutoral que farmacêutico: “Não desanime; a sua moléstia tem um prazo certo; são três períodos.” Quis pedir o dinheiro, restituir o vidro e esperar o fim do prazo certo, mas o homem já ouvia outro freguês, igualmente enfermo dos olhos, e naturalmente ia preparar-lhe o mesmo remédio, pelo mesmo preço, com o mesmo prazo e igual animação.

Muitas doenças têm prazo certo. A gripe é uma delas. A maioria das pessoas se cura com ou sem tratamento após uma semana ou duas. Gripe não tem tratamento. A cura chega quando nossas defesas imunológicas vencem o vírus. O quer podemos tratar são os sintomas.

É por isto que o elixir do homem da cobra, fabricado com água de torneira, corante e sal curava muitas doenças. De fato, curava todas as doenças que tinham prazo certo.

A covid-19 guarda semelhanças com a gripe. É uma doença contagiosa provocada por um vírus. A maioria das pessoas consegue vencê-la e se cura em 10 ou 15 dias, com ou sem tratamento. Se você estiver nesta parcela de 80% ou 90% que não sofre com a covid-19, então não importante o “tratamento preventivo” ou “precoce” que faça, ele parecerá funcionar!

No entanto, assim como acontece com a gripe, há uma pequena parcela de 20% ou 10% que fica grave. Destes uma parcela menor fica muito grave e corre o risco de morrer. É quando faz falta o hospital, os médicos, os enfermeiros, a UTI. Para estes casos coisas como ivermectina e hidroxicloroquina não funcionam e não dão a impressão que funcionam.

Como acontece com a gripe, não existe tratamento para covid-19. Nem precoce, nem tardio, nem hora nenhuma. Os médicos tratam os sintomas conforme eles vão aparecendo e conforme a gravidade. Para isto usam oxigênio, analgésicos, antitérmicos, anti-inflamatórios. Este tratamento sintomático, se der certo, dará tempo ao organismo para que seu sistema imunológico vença o vírus. No momento, é só o que a medicina pode fazer pelo paciente.

Felizmente, a enorme maioria das pessoas vai resistir bem à doença. Infelizmente, não sabemos quem são. Qualquer um de nós, velho ou novo, homem ou mulher, pode ficar mal e pode morrer. Com tratamento sintomático, nossas chances melhoram; sem ele, pioram.

Existe a vacina. No entanto a vacinação em massa ainda não está ao nosso alcance. Sendo otimista, estaremos todos vacinados até o meio do ano que vem. Sendo realista, é mais provável que só estaremos todos vacinados no início de 2023.

Por isto, neste momento, a única prevenção realmente disponível são os já conhecidos distanciamento social, uso de máscaras e higiene permanente.

 

Perigo do homem da cobra

Com a covid-19 ressurgiu o homem da cobra. Só que agora ele não vende elixir de ervas da Amazônia, mas sim ivermectina, hidroxicloroquina, Annita, azitromicina. A diferença é que a água de torneira do homem da cobra não matava, já a panaceia que ele oferece hoje mata. Depois de um ano desta insensatez de “tratamento precoce” e “tratamento preventivo”, os hospitais já têm números que apontam para um aumento de problemas cardíacos, comprometimento dos rins e destruição do fígado entre aqueles que tomaram estes modernos remédios do homem da cobra.

O número de pacientes que tomaram estas drogas e estão internados em estado grave ou morreram é alto e estatisticamente significativo. Tão significativo que o SUS começa a ter mais um problema: como tratar os pacientes que tiveram complicações com o uso destas drogas. Em especial, problemas cardíacos, hepáticos e renais.

 

Estatísticas tristes

De novembro de 2020 para cá o crescimento da covid-19 no Brasil é assustador e trágico. Esta semana chegamos a 100 mil novos casos por dia e estamos beirando 3.000 mortes por dia. São 12,5 milhões de infectados, 302 mil mortos e 1,3 milhão de doentes ativos.

Em Bom Despacho perdemos 51 conterrâneos para a doença. Na última semana pouco faltou para atingirmos a assustadora marca de uma morte por dia.

Já não temos mais as sombras das velhas árvores da Praça da Matriz. O homem da cobra já não traz mais a cansada jiboia escondida na carcomida valise preta; no entanto, temos, ainda, o surrado despautério verborrágico e a imorredoura crença em panaceias. Hoje elas atendem pelos nomes de ivermectina e hidroxicloroquina. Suas vítimas estão se somando às vítimas do coronavírus.

Precisamos valorizar a medicina baseada em evidência. As evidências nos dizem que ivermectina e hidroxicloroquina não servem para tratar covid-19 hora nenhuma. O que as evidências nos dizem é que, tirando a vacina, a melhor prevenção vem de hábitos: distanciamento social, uso de máscara e limpeza da mãos.

Quanto ao homem da cobra e seu vidrinho de elixir mágico, que ele seja apenas uma lembrança pitoresca que desaparecerá quando os mais velhos como eu desaparecermos. Coisa, aliás, que não deve demorar muito.

Fernando Cabral

Fernando Cabral é licenciado em Ciências Biológicas, advogado, auditor federal e ex-prefeito de Bom Despacho

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