O medo vai nos tornando menos acolhedores

ALEXANDRE MAGALHÃES  – “Eu tenho medo e medo está por fora / O medo anda por dentro do teu coração / Eu tenho medo de que chegue a hora / Em que eu precise entrar no avião / Eu tenho medo de abrir a porta / Que dá pro sertão da minha solidão / Apertar o botão, cidade morta / Placa torta indicando a contramão / Faca de ponta e meu punhal que corta / E o fantasma escondido no porão / Faca de ponta e meu punhal que corta / E o fantasma escondido no porão / Medo… / Medo… / Medo, medo, medo / Medo… / Eu tenho medo que Belo Horizonte / Eu tenho medo de Minas Gerais / Eu tenho medo que Natal, Vitória / Eu tenho medo Goiânia – Goiás / Eu tenho medo Salvador – Bahia / Eu tenho medo Belém, Belém do Pará / Eu tenho medo Pai, Filho, Espírito Santo, São Paulo / Eu tenho medo eu tenho C eu digo A
Eu tenho medo um Rio, um Porto Alegre, um Recife / Eu tenho medo Paraíba, medo Paranapá / Eu tenho medo estrela do norte, paixão, morte é certeza / Medo Fortaleza, medo Ceará / Eu tenho medo estrela do norte, paixão, morte é certeza / Medo Fortaleza, medo Ceará / Medo… / Medo… / Medo, medo, medo / Medo… / Eu tenho medo e já aconteceu / Eu tenho medo e inda está por vir / Morre o meu medo e isto não é segredo
Eu mando buscar outro lá no Piauí / Medo, o meu boi morreu, o que será de mim? / Manda buscar outro, maninha no Piauí / Medo, o meu boi morreu, o que será de mim? / Manda buscar outro, maninha no Piauí”.

A música acima é do saudoso Belchior e se chama “Pequeno Mapa do Tempo”. Nunca achei uma música tão perfeita para os tempos atuais. Vivemos o tempo dos “des”: desgoverno, desemprego, desmatamento, deseducação, desencanto, desespero, destempero, desilusão, desamor, desconversa, desprezo pelo outro, desprezo pelo diferente, desvacina, dessaúde, descidadania … mas, desistir, jamais!

Sempre vivi minha vidinha sem grandes medos. Acredito que a vida é só aqui, mesmo, sem muito sentido lógico ou religioso. Porém, o que vejo em nosso país, em meus estados, São Paulo, por nascimento, e Minas Gerais, por adoção, em minhas cidades, São Paulo, por nascimento, e Bom Despacho, por adoção, é inédito. E a situação inédita, diferente nos dá medo…

São Paulo decretou fechamento de tudo entre 23:00 e 5:00 horas da manhã. O número de mortos por covid-19, considerando a média diária, nunca foi tão alto. A cidade de São Paulo já contabiliza mortos da nova cepa do novo coronavírus, que é muito mais mortal e muito mais transmissível do que o vírus original. Bom Despacho, apesar eu não ter tanta informação disponível, também parece estar em um momento crítico da doença.

Minhas famílias vivem em São Paulo, minha mãe, meus irmãos e minha filha Isabella, e em Bom Despacho, minha namorada e quase toda a sua família. Ninguém foi vacinado, ainda.

Sinto-me vendo aqueles filmes de ação, no qual o expectador está assistindo as duas cenas simultaneamente: em uma, o herói está fazendo alguma ação, achando que ninguém sabe que ele está ali; na outra, algum perigo enorme se aproxima do herói. Nós torcemos pelo herói, mas o perigo está chegando, chegando, chegando… e nós estamos vendo o desastre se aproximando. Nos filmes, geralmente, o herói escapa ileso e só nos sobra o coração batendo rápido e quase saindo pela boca. Mas, na vida real, nem sempre os heróis escapam, apesar de torcermos e rezarmos para que tudo corra bem…

Nossas vidas atuais parecem combo de TV a cabo ou telefonia, tudo vem grudado. Você quer só banda larga, mas a empresa “te obriga” a comprar junto com a banda larga, uma TV a cabo, um pacote de telefonia móvel, instalar um novo número de telefonia fixa… além da covid-19, há uma economia respirando por tubo de oxigênio, o que deve levar milhões de pessoas a perder seus empregos, milhares de empresas devem fechar as portas por perda nas vendas, por falta de clientes com emprego e dinheiro no bolso. Tudo junto. É nosso combo: doença mortal, desemprego, economia em colapso…

A possibilidade de ser infectado com a covid-19, de perder meu emprego, de não ter dinheiro para sobreviver com dignidade, de perder minha mãe, meus irmãos, minha filha, minha namorada, meus sogros… atrai o medo. O medo nos paralisa.

O Brasil atual está dividido em duas partes: a primeira, dos que estão com medo e paralisados; a segunda, dos que ignoram os perigos e por isso não têm medo e não estão paralisados. Pior, estes são os que se aglomeram sem máscaras e ajudam a roda da morte a girar mais rápido, aumentando o número médio de mortes diárias, enchendo os hospitais com infectados pelo novo coronavírus, levando o sistema de saúde nacional, estadual e municipal ao caos que se encontram hoje.

Enquanto países mais pobres do que o nosso, como o Chile, já estão vacinando mais de 50% de suas populações e vacinam em larga escala, nosso país continua tentando comprar vacina e não logramos vacinar nem 3% de nossa população.

O medo vai nos tornando menos acolhedores. Ontem, aniversário da Sara, filha da Eleuza, colaboradora de minha namorada bom-despachense, a cumprimentei com um toque de mão fechada. Nem um abraço, nem um beijo de feliz aniversário. Triste! À noite, um amigo de minha namorada estendeu a mão para me cumprimentar. Fiquei olhando aquela mão à minha frente, sem saber o que deveria fazer. Minha vontade era gritar: “você está louco de me estender a mão?”. Mas, por vergonha, devolvi o cumprimento, apertando-lhe a mão. Assim que ele virou as costas, corri ao banheiro e lavei as mãos, adicionando muito álcool em gel. Medo…

Nunca sentimos tanto medo de alguém que espirre ou tussa. Pior, o sentimento não é apenas de medo, mas de raiva da pessoa, como se ela tivesse escolhido espirrar ou tossir propositalmente perto de nós.

Medo… medo de que a melhora desta situação esteja ainda muito longe de nós. Tenho medo de não estar errado nessa avaliação…

Cante, Belchior, a trilha sonora de minha vida neste momento: “Eu tenho medo e medo está por fora / O medo anda por dentro do teu coração…”.

Alexandre Magalhães

Alexandre Sanches Magalhães é empresário, consultor e professor de marketing, mestre e doutor pela USP e apaixonado por SP e BD

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