A fogueira que aquece os nossos corações
VANDER ANDRÉ – Já faz anos que o tempo costuma esfriar no mês de junho e lá vamos nós, todos festeiros e vestidos de “caipira”, em busca de fogueiras para nos aquecer em Bom Despacho e região, nas noites frias do início de inverno no cerrado.
Cruzamos estradas empoeiradas, ladeadas por lindos cipós de São João, cujas flores laranjas contrastam com o marrom da terra, até chegarmos, ruidosos, às tão desejadas roças. Ao redor dos calorosos braseiros, e sob um vento cortante de tão gelado, ficamos abrigados sob várias camadas de roupas, sentindo-nos protegidos das intempéries. Aos poucos, em um verdadeiro strip-tease do interior, vamos retirando cada peça de roupa que agasalha, até que o xadrez se torne evidente.
Este é um período de fartura de comida típica das festas juninas por aqui: canjica, pipoca, biscoitos, rosca, chá e cafés quentinhos, servidos sem muita cerimônia, em copos e pratos plásticos, que chegam queimando os dedinhos mais sensíveis. Para alguns, o quentão desce cheiroso, disfarçando a aguardente com ervas misteriosas, como alfavaca, assa-peixe, cravo, canela em pau, casca de mexerica, que os antigos sabem temperar. Para outros, resta o caldo de mandioca ou feijão para contrabalançar.
A música ressoa alto, os sons vêm alegres de sanfonas, que são o coração do forró, integradas com instrumentos que fazem os corpos balançarem no ritmo animado da festa. Acima de tudo, essa é uma festa de fé, um marco da religiosidade que faz parte da cultura e da história do nosso povo. São entoadas canções, rezados terços e orações, pedindo a guarda e a proteção dos santos católicos Antônio, João e Pedro para todos os presentes, independentemente de suas crenças ou descrenças.
Acredita-se que tais festas tenham sido trazidas para o Brasil pelos invasores portugueses durante o período colonial, mas que sofreram forte influência das tradições indígenas (notadamente a fogueira e os rituais da agricultura) e afro-brasileiras (as danças, as músicas e seus instrumentos).
Em Bom Despacho, a tradição das festas juninas segue forte e há eventos agendados e programados na cidade e região, oportunidade em que, de forma lúdica e agradável, mantemos a tradição que nos faz diversos nessa pluralidade de costumes e culturas das gentes do mundo inteiro.
Nesta coluna, abro espaço para o internauta Wellerson Michael, que nos acompanha nas redes sociais e me enviou este poema, escrito por ele em 2018, demonstrando a beleza dos momentos em família que ocorrem neste período de confraternizações.
Wellerson passou a sua infância em Bom Despacho dos 4 aos 12 anos, e depois viveu um período em Belo Horizonte e Lisboa, onde atuou como técnico de instalação e manutenção de Internet até 2011. Desde seu retorno ao Brasil, viveu em Belo Horizonte e há 8 anos está em Bom Despacho, onde trabalha como salgadeiro. Ele me contou que sempre gostou muito da roça e frequenta a propriedade rural de sua tia Nêga, na Colônia dos Alemães. Sua mãe é dona Vânia Gomes, e seu pai, falecido, era Laércio Santos. Seu padrasto é Antônio Ferreira Filho, o Totonho da Fazenda Colônia (Álvaro da Silveira, perto da Passagem), onde acontece a Fogueira do Totonho, idealizada por sua mãe, Dona Bita. Este evento, realizado há 40 anos em razão de uma graça alcançada, ocorre sempre na véspera do dia de Santo Antônio, na noite dos namorados. (Vander André Araújo é advogado, filósofo e escritor / Foto: da esquerda para a direita estão Vânia de Fátima Gomes Ferreira, Amanda Cristina Ferreira, Ana Rita Ferreira, Antônio Ferreira Filho [Totonho], José Ferreira Soares [Barroso] e Rita Maria Ferreira [Dona Bita, já falecida] / Arquivo da família).
A Nossa Fogueirinha
A noite era noite fria
O dia era dia doze
O mês era mês de junho
Ano vinte dezesseis
Todo ano nesse mês
Um belo evento acontece
É noite de reza e quermesse
Vou resumir pra vocês.
A festa é festa bonita
De encanto e descontração
Muita fé e devoção
Fartura de prosa e comida
Gente bonita, bebida
Fogueira, canjica, quentão
Pão com carne, café, bolo
Caldo de mandioca e feijão
Cada um que vai chegando
Pra poder enfrentar o frio
Já pode ir pegando um copo
Ir beirando o fogão
E escolher o que apetece,
Pode se sentir em casa
Não precisa, não carece
Qualquer autorização
Pode servir do seu jeito
Devagar ou bem ligeiro
E até colocar fueiro
Pra caber mais um pouquinho
Só não convém exagero
Muito menos desperdício
Pois foi grande o sacrifício
E feito com muito carinho
Depois é a hora do terço
Todo mundo é convidado
A chegar lá pro outro lado
Onde foi montado um altar
Dona Vânia minha mãe
Puxa a reza com a destreza
Que é de sua natureza
Aquela sabe rezar!
Quando se finda o terço
É hora de fazer pedido
Pro Santo casamenteiro
E arranjador de namoro
Mas tem que ser rapidinho
Pois já já vem meu padrasto
Para levantar o mastro
Alto feito um miradouro
Depois da missão cumprida
Cada um vai se ajeitando
Mais pertinho da fogueira
Que é pra poder se esquentar
E aqueles que são solteiros
Vão rodeando o terreiro
Escaneando com os olhos
Um alguém pra paquerar
Logo logo nós passamos,
As minhas irmãs e eu,
E amigos voluntários
Servindo comes e bebes
Bolo pra adoçar a boca
Quentão pra esquentar o peito
E assim de barriga cheia
E alma leve o evento segue
A fogueira vai ardendo
E aos poucos vai ruindo
Então começa-se a ouvir
Palavras de despedida
“Já é tarde”, “amanhã é cedo”
Diz o povo que vai saindo
“Que Santo Antônio abençoe
Sua família e sua vida”.
Com a fogueira já no fim
Brasas e troncos no chão
Ainda são atrativos
Pra um ou outro folião
São apenas quatro ou cinco
E assunto pra noite inteira
Enquanto tiver saideira
E o som de um violão
Lá de cima Santo Antônio
Na sua bandeira enfeitada
De flor e fita mesclada
Num bonito vai e vem
Abençoa todo mundo
E traz muita paz e saúde
Para que possamos todos
Voltar no ano que vem!