Vereadores: quando a demagogia passa por cima da lei

Não é a saúva que acaba com o Brasil, é a demagogia dos políticos. Medrosos, não têm coragem de fazer o que precisa ser feito para o bem de todos. Covardes, não enfrentam as dificuldades do cargo. Fisiologistas, traem o voto do eleitor para beneficiar uns poucos cabos eleitorais. Nas redes sociais, criam e alimentam boatos (que agora são mais conhecidos por seu nome anglicizado de fake news). Este é o triste perfil da maioria dos políticos brasileiros.

De males semelhantes sofre a maioria dos vereadores bom-despachenses. Dois exemplos disto aconteceram recentemente. Semanas atrás os vereadores engavetaram o projeto de reforma da previdência (BDPrev). No entanto, era uma reforma absolutamente essencial. Mas, por falta de coragem e demagogia, arquivaram o projeto e jogaram o problema para frente.

Agora, sob a liderança da vereadora Joice Quirino, apresentaram e aprovaram em primeira votação, projeto inconstitucional, ilegal e inconveniente que se destina a beneficiar 42 servidores em detrimento de mais de 1.300 e em detrimento do cidadão.

Foram duas decisões chocantes. Como consolo – se é que podemos considerar assim – sabemos que foi por maioria e não por unanimidade. Isto mostra que alguns ainda têm bom-senso na Casa Legislativa do município.

Mas o pior é que o projeto não terá qualquer efeito prático para os 42 servidores contemplados.

 

Volta de privilégios

A prefeitura tem pouco mais de 1.350 servidores. Destes, 42 tinham benefícios surpreendentemente altos: até 512% de gratificação sobre seu salário. Isto é uma aberração em qualquer lugar do mundo.

Pois bem, esta gratificação criava três problemas sérios:

a) Para o próprio servidor, pois a gratificação não faz parte dos vencimentos. Com isto, ao se aposentar ou cair doente, sua remuneração ficava até 6 vezes menor. No caso de morte, seus filhos menores e cônjuges passavam a receber apenas uma pequena fração do que o servidor ou servidora recebia.

b) Criava animosidade entre servidores. Por exemplo, um enfermeiro sem a gratificação poderia ter remuneração de R$ 1.000,00 enquanto que o privilegiado poderia receber R$ 6.000,00. Isto, embora ambos tivessem o mesmo tempo de casa, a mesma formação acadêmica e até o mesmo trabalho. A injustiça é evidente.

c) Trazia prejuízo para mais de 1.350 servidores do município, porque o dinheiro da gratificação de 42 se tornava indisponível para melhorar a remuneração dos demais.

Um quarto problema é que esta forma destorcida de remuneração prejudica também o BDPREV, já tão prejudicado com o arquivamento do projeto de reforma.

Pois bem, faz alguns anos, esta gratificação foi cortada. O corte foi gradativo e suave. O objetivo era acabar com o privilégio de poucos e, oportunamente, fazer a distribuição equitativa deste dinheiro entre todos os servidores mediante a criação de um verdadeiro plano de cargos e salários.

No entanto, alguns vereadores demagogos e irresponsáveis (infelizmente, não há outra palavra!) estão tentando fazer tudo voltar à estaca zero. E tentam fazê-lo de forma absurda, ilegal e inconstitucional. A iniciativa é da vereadora Joice Quirino que propôs e pautou projeto de lei que volta com a gratificação para os 42.

Como toda demagogia, é um engana trouxa. Ou seja, troca-se um aparente ganho de curto prazo por enormes prejuízos de longo prazo. Mas, neste caso, é mais grave: não haverá ganho algum. É só enganação mesmo. Isto porque tal projeto, não importa como os vereadores votem, não prosperará. Os benefícios jamais chegarão aos 42. Veja por quê:

 

É inconstitucional

Vereador não pode apresentar projeto de lei que trate de assuntos relativos ao pessoal do Poder Executivo. É o que diz a Constituição da República no seu art. 61, §1º, II, a e c. Portanto, este projeto não deveria nem mesmo existir.

 

Ofende a Lei Orgânica do Município

A Lei Orgânica do Município de Bom Despacho, no seu art. 74, II, b dispõe que a competência para propor alterações que envolvem pessoal do Executivo é de iniciativa exclusiva do Prefeito. Além disto, na Lei Orgânica há outras vedações, como aquela que consta do inciso I, do parágrafo único do art. 112.

 

É ilegal

O projeto ofende várias leis. Eis algumas delas:

a) Lei de Responsabilidade Fiscal, que proíbe alterações de vencimentos e vantagens no final do mandato (art. 21, II, b; III e IV);

b) Lei nº 9.504/97, especialmente no seu art. 73, V, proíbe a readaptação de vantagens em período eleitoral;

c) PPA, LDO e LOA do Município, que não preveem tal despesa;

 

Ofende princípios da administração pública

O Administrador Público e o Legislador não podem criar despesa sem indicar a receita que a cobrirá. Qualquer vereador – como qualquer pessoa – entende isto. No entanto, como a demagogia é quem está comandando, os proponentes do projeto e aqueles que votaram a favor dele fazem de conta que tal restrição não existe. Assim, prometem dar para 42 servidores gratificações de até 512% sem dizer de onde virá o dinheiro. Trata-se, portanto, de um ato irresponsável.

Em resumo, o projeto de lei é inconstitucionalilegalabsurdo e inconveniente.Se é assim, por que a vereadora Joice Quirino o apresentou? Como presidente da Câmara, por que o colocou em votação?

Não foi por ignorância, pois ela sabe que o projeto é inconstitucional e ilegal. Mesmo que ela pessoalmente não soubesse, seguramente foi alertada pela Assessoria Jurídica e pelas comissões permanentes da Câmara. Então, por que ela colocou em votação esta excrescência legislativa?

O objetivo é límpido: demagogia. Se o projeto for aprovado em segundo turno, sua autora, Joice Quirino, e aqueles que votarem a favor, ficarão bem com os 42 servidores. Ao mesmo tempo, o prefeito ficará mal, pois será constrangido a vetar o projeto.

Fiquei estarrecido, mas me calei quando os vereadores arquivaram o PL da reforma do BDPREV, pois prestaram um desserviço aos servidores, ao contribuinte e à Administração. Agora estou indignado com mais este ato de covardia e demagogia. Os servidores não merecem esta enganação e não posso me calar. Não posso ver 42 servidores serem ludibriados desta forma.

 

Prejuízo para todos os servidores

Por ser inconstitucional e ilegal, este projeto, mesmo aprovado, não trará benefício para os 42 servidores. Ele será obrigatoriamente vetado pelo prefeito. Se os vereadores derrubarem o veto, o prefeito terá obrigatoriamente que ajuizar ação de inconstitucionalidade. Isto, se o Ministério Público não o fizer antes.

Portanto, os 42 destinatários da demagogia não seriam beneficiados. No entanto, todos os servidores serão prejudicados. Isto porque nesta segunda-feira (14/9) a Prefeitura contratou especialista que fará o plano de cargos e salários para todos os servidores. Ora, se o prefeito for obrigado a ajuizar ação de inconstitucionalidade contra a lei decorrente deste projeto irresponsável e demagógico dos vereadores, será temerário prosseguir com a contratação. Seria mais prudente esperar a decisão da justiça. Isto pode levar muitos anos. Enquanto isto, os servidores ficarão sem solução para a demanda.

Não podemos mudar o comportamento de políticos demagogos, mas podemos ao menos alertar as suas vítimas. Neste caso, quem achar que vai se beneficiar com este projeto deveria consultar a constituição, a lei ou seus advogados. Verão que estão tentando fazê-los de bobo.

O resto depende da consciência de cada um.

Ao contrário do que disse Auguste de Saint-Hilaire, a saúva não acabou nem vai acabar com o Brasil. A demagogia, porém – esta sim – continua atravancando o Brasil.

Se este projeto for aprovado, será a vitória da demagogia contra o Estado de Direito. Para os 42 servidores que seriam beneficiados, será uma vitória de Pirro. Para os demais servidores, será um dia triste por causa do retrocesso na elaboração do plano de cargos e salários.

Fernando Cabral

Fernando Cabral é licenciado em Ciências Biológicas, advogado, auditor federal e ex-prefeito de Bom Despacho

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