Achei que minha mãe era imortal
ALEXANDRE MAGALHÃES – No dia 2 de novembro, há três semanas, eu estava em Bom Despacho. Como era feriado, dormi até mais tarde. Desde as 6:00 horas da manhã, meus irmãos tentavam me ligar para dar a notícia mais triste: minha guerreira mãe havia falecido. Aos 79 anos de idade, acordou de madrugada, como sempre, tomou banho antes de enfrentar sua pesada rotina diária, como sempre, passou mal e morreu em poucos minutos. Ainda pediu ajuda de meu irmão, mas não resistiu.
Como minha mãe fazia piada com tudo, imagino ela me dizendo “morri no Dia dos Mortos, para ninguém esquecer de mim” ou “tomei banho antes, para morrer limpinha”, frases que eram bem a cara dela. Quando fez 79 anos, em maio passado, começou a dizer para todos que morreria antes dos 80, pois “as placas de trânsito dizem “não passe dos 80””, e todos riam. A piada virou verdade.
Eu e minha namorada bom-despachense pegamos o carro e dirigimos o dia todo para nos despedirmos de minha mãe.
A guerreira
Aos 39 anos, minha mãe deu à luz meus dois irmãos gêmeos, o Daniel e o Rafael. Por um erro médico dois dias antes do nascimento, eles perderam oxigênio no cérebro e têm severa deficiência intelectual e comprometimento físico permanente.
Desde o nascimento de meus irmãos mais novos, ela e meu pai abandonaram a vida própria e passaram a viver para os filhos. Tudo passou a ser planejado conforme as necessidades dos filhos gêmeos.
A casa foi toda reformada e barras foram colocadas em todos os ambientes, para facilitar a vida de quem tem dificuldade na locomoção.
Quando meus irmãos tinham uns 10 anos, eu comprei passagens, hotéis e passeios para que meu pai e minha mãe fossem passear por suas terras natais, Portugal e Espanha. Contratei cuidadores para os 30 dias de viagem, tudo para que eles ficassem tranquilos e aproveitassem o passeio. Ao saberem que os filhos gêmeos não iriam, recusaram o presente e nunca saíram sozinhos, nem para ir a um restaurante ou cinema.
Os últimos anos
Desde a morte de meu pai, há quase sete anos, minha mãe dedicou-se totalmente aos cuidados dos filhos gêmeos: comida, idas ao banheiro, banhos diários, cuidado com as roupas, fazer barba, cortar cabelo, agenda de fisioterapias, entre outros detalhes que consumiam 100% de seu tempo.
Seus únicos prazeres pessoais eram receber a manicure semanalmente para deixar as mãos mais bonitas e tingir os cabelos regularmente. Nada mais.
A figura mais querida
Minha mãe estava sempre sorrindo. Sempre. Vi minha mãe chorar apenas quando perdeu um sobrinho assassinado e quando meu pai faleceu. Achava todos e todas lindos e lindas. Lembro-me de uma situação, na AACD, entidade que cuida de deficientes de vários tipos, onde havia um rapaz que todos se assustavam ao vê-lo pela primeira vez. Todo deformado, o rapaz se aproximou de minha mãe e ela o cumprimentou carinhosamente, como fazia com todos. Ele perguntou como ela não havia se assustado. Ela disse a ele que o achava bonito, “uma beleza diferente”, complementou. Durante anos, as enfermeiras da AACD contavam essa história, para definir quem era minha mãe, que frequentou esta instituição por mais de uma década, fazendo fisioterapia, tratamentos diversos e cursos para melhor cuidar dos filhos gêmeos.
Um anjo
Minha namorada bom-despachense diz a todos que minha mãe é a pessoa mais perto de um anjo que ela conheceu. Concordo. Sempre ajudava a todos que a procuravam. Mesmo com o dia a dia repleto de tarefas duras ligadas aos cuidados com os filhos, era sempre chamada pelos vizinhos para cuidar de bichos e plantas, quando viajavam. Tinha a chave de várias casas vizinhas, pois todos confiavam nela para abrir a casa para pequenas reformas, entregas, verificar se desligaram o fogo ao sair para o trabalho, entre outras dezenas de possibilidades.
Achei que ela era imortal
Eu dizia a meus irmãos e amigos que a conheciam, que minha mãe era tão especial, que esperaria os filhos gêmeos morrerem, para só então, descansar. Eu tinha certeza disso. Eu conheci uma senhora que também tinha uma filha com deficiência intelectual, que morreu uma semana depois da filha. Achei que com minha mãe seria igual.
Mas, o dia a dia pesado, carregando meus irmãos de 40 anos pela casa toda, a deixou muito fraca. Mesmo com a ajuda dos outros três filhos, ela desgastou-se fisicamente.
Morreu de maneira similar a meu pai. Passou mal e partiu em poucos minutos, sem sofrimento. Fazendo sofrer a todos que a conheceram, sempre com sorriso no rosto e uma piada pronta para descontrair a todos.
Os gêmeos
Eu e meus outros dois irmãos assumimos a tarefa de cuidar de meus irmãos gêmeos. Cada um faz o que pode. Em três, não fazemos, nem de longe, o que minha mãe fazia sozinha ou com pouca ajuda. E sempre com um sorriso no rosto.
Após três semanas cuidando de meus irmãos gêmeos, não consigo acreditar como ela fazia isso sozinha, nos últimos sete anos, após a morte de meu pai.
Um anjo e uma guerreira!
Meus irmãos gêmeos ainda choram sua morte. Tento dizer a eles para lembrarem de sua alegria, de suas brincadeiras, de seu eterno sorriso. Não será fácil para eles entenderem por que a vida fez isso a eles. Perderam o apoio, a cuidadora, a amiga, aquela que os fazia sentirem-se vivos.
Amor de mãe
Aproveito esse momento para homenagear a todas as mães bom-despachenses. Só uma mãe consegue amar de maneira incansável, infinita, ininterruptamente.
Aos filhos, dou o mesmo conselho que sempre dei a minha filha: curtam suas mães e pais, avôs e avós. Visite-os sempre que possível, pois a vida é curta demais.
Obrigado, mãe, por tudo que fez aos filhos, amigos, vizinhos e parentes. Especialmente, ao que fez para seus filhos mais novos, o Daniel e o Rafael. Você será sempre insubstituível! Te amo!
LEGENDA DA FOTO: Da esquerda para a direita estão: Alexandre Magalhães, Daniel Sanches Magalhães (um dos gêmeos), Leonor Sanches Magalhães (a mãe), Daniela Sanches Magalhães (a irmã), Celestino Pereira Magalhães, o pai, Eduardo Sanches Magalhães, irmão e o gêmeo Rafael Sanches Magalhães.
(Portal iBOM / Alexandre Sanches Magalhães é empresário, consultor e professor de marketing, mestre e doutor pela USP e apaixonado por BD e SP / Foto: Arquivo pessoal)
Também achei que ela era imortal ou que viveria até os 90 e tantos. Ela nos deixou sem sofrimento e mereceu essa passagem. A casa ficou vazia mas a luz que ela tinha permanece. Sempre faltarão as peças principais o meu pai e a minha mãe, como eu os chamava.
Após 3 meses ainda penso em contar algo, mostrar uma foto ou pedir uma ajuda.
Ela faz falta demais. Não só para os gêmeos mas para todos nós.
Espero poder fazer pelo menos uma parte do que ela fazia para eles e manter o bom humor e a paz que sempre existiu em sua casa.
Ela não era imortal…. infelizmente.
Te amo!