A Beleza Negra em Bom Despacho
VANDER ANDRÉ – Raramente encontro imagens capturadas de pessoas negras em fotografias que documentam as celebrações festivas e festas populares da nossa sociedade. Isso também se estende aos espaços, de certa forma, restritos a poucos cidadãos, como os camarotes e áreas VIP.
Busco por evidências nos registros fotográficos de eventos, incluindo festas com investimento público, que ressurgiram com vigor após um período pandêmico. Analiso as publicações em rede social divulgadas pela imprensa e nos canais oficiais dos órgãos públicos, porém encontro poucas informações visuais confirmando as presenças da população negra, o que levanta dúvidas sobre a efetiva realização dos eventos nas terras da senhora do sol.
Existe, portanto, uma beleza negra que precisa ser re-conhecida em nossa cidade. Ela frequentemente é esquecida, em alguns momentos negligenciada, não apenas pelas políticas públicas pouco abrangentes. Conscientemente ou não, parece que nós estamos deixando de lado essa beleza em nosso cotidiano, especialmente nas discussões sobre o conceito do que é “belo pra mim”.
Ainda assim, contamos com a exuberância do reinado, a Festa do Rosário em Bom Despacho, uma expressão máxima do patrimônio cultural e religioso, onde os negros podem, livremente, se manifestar plenos e pertencentes a esse território. Trajando vestimentas brilhantes, eles se organizam em cortes numa hierarquia monárquica, conectados aos demais fiéis neste momento sincrético, entoando canções e dançando pelas ruas embranquecidas e menos esburacadas da área central da cidade. Nessas ocasiões, recebem aplausos, participam ativamente das cerimônias e são coroados nos altares das igrejas.
Em 11/11, poucos dias antes de celebrarmos a consciência negra, assisti ao desfile na passarela improvisada, onde algumas das belezas negras participavam, orgulhosas, do concurso realizado na quadra da Escola Coronel Praxedes, ali pertinho do antigo Clube.
Na passarela, jovens negros, tanto homens como mulheres, desfilavam com uma beleza notável para o público e um grupo seleto de jurados, vestindo trajes afro e, é claro, “sociais”. Fiquei intrigado tentando imaginar a qual sociedade esses trajes sociais se referiam, especialmente os que eram patrocinados por lojas de grife da cidade. Na plateia havia familiares, amigos, membros das comunidades quilombolas do Quenta-Sol e Carrapatos da Tabatinga, além de patrocinadores e seus representantes com suas caixas vistosas de presentes.
Nas falas da apresentadora Graça Epifânio, a coordenadora da igualdade racial da Prefeitura, as palavras surgiam espontâneas, enérgicas, como força, luta, legado, elegância, com uma “sensação profunda de realização”, numa completa epifania!
Havia ali poucos brancos, como eu. Pedi para que a Graça me falasse um pouco sobre o que sentiu ao apresentar o evento, e ela me respondeu: “Trata-se de um sentimento de várias emoções juntas, pois o concurso foi idealizado para essa população forte, guerreira, de uma sabedoria sem igual” e concluiu dizendo que “sente bastante orgulho de fazer parte dessa nação que supera as dificuldades com esperança todos os dias, pois a luta continua!”
Compartilhando a minha percepção do momento com o artista gráfico Diogo Cavalcanti, que também estava presente no evento, chegamos à conclusão de que aquele seria um bom exemplo de que, quando os indivíduos negros se auto-organizam, eles conseguem superar estruturas de opressão, assumindo um protagonismo e tornando-se visíveis para todos.
Isso refletiu no que o Concurso Beleza Negra fez, se pensarmos em quantos meninos e meninas negros por esse Brasil afora já foram aplaudidos ao longo das suas vidas, por serem justamente quem são. Quantos deles não foram classificados como os “mais feios da escola”, nas suas infâncias, como aconteceu com a atriz Taís Araújo. Assim, o evento instigou em mim uma nova maneira de perceber a beleza e, por meio dela, enxergar cada vez mais o outro na cidade-sorriso.
Fiquei imaginando se esse evento acontecesse no antigo Clube Social, onde ainda nutro uma expectativa de que ali venha a se tornar a tão sonhada Casa de Cultura. Afinal, foi inclusive deliberada essa proposta, pela maioria dos presentes, na conferência municipal de cultura, ocorrida em outubro, na “Casa do Povo”.
Revejo minhas memórias e me vem à mente a oligarquia de outras épocas, o glamour das famílias de Bom Despacho, que tinham “cotas” no Clube e podiam lá desfilar com seus modelos caros, coisa de moda e ostentação, bailando naquele salão de piso de taco, com alguns toques arquitetônicos modernistas, ao som de bandas vindas com fama, de algum lugar longe daqui. A minha ideia, ao contrário, seria transformar o Clube no epicentro de fruição artística na cidade, não deixando também de incluir as regiões periféricas, conforme ressaltado pelas representantes dos quilombos e dos bairros mais distantes da região central, durante a Conferência Municipal de Cultura.
Em “Procurando Nemo”, o divertido filme da Disney, há uma busca incessante dos personagens, pai e filho, em procurar superar as dificuldades do “sujeito” abandonado, esquecido, perdido e solto pelo mundo das águas. Nemo, em latim, significa, por incrível que pareça, Ninguém, nome esse imortalizado por Júlio Verne, em 20.000 léguas submarinas e revisitado na animação estadunidense.
Entretanto, aqui na Terra, a nossa procura atual é mais complexa. Ninguém melhor do que os invisibilizados, os esquecidos e aquilombados que estão do nosso lado, para nos dizer o quanto é importante colocar a “mão na nossa consciência” e refletir sobre como podemos contribuir para a formação de uma sociedade mais inclusiva, justa e capaz de reconhecer o direito de todos e todas, encontrando ninguém menos que o outro. “Procurando nome”, o que se deve dar a isso é reparação histórica.
Quando escrevo sobre esse conceito de belo, discutido e reconhecido na nossa cultura ocidental desde o clássico diálogo platônico, me lembro de uma canção composta pelo Alberto Costa, que eu cantava ainda menino, uma espécie de Nemo perdido, durante as catequeses católicas, quando nem imaginava qual apagamento, qual inexistência poderiam ser esses. Bradávamos em alto e bom tom, por meio dessas pequenas estrofes: “Belo pra mim/ é criança a brincar/ Ouvir mil canções/ numa concha de mar./ É chuva caindo/ é campo em flor/ E acima de tudo/ É o amor./ Belo pra mim/ Quando estou a sofrer/ E as trevas da alma/ Começam a crescer/ É saber com alegria/ Que além, muito além/ À espera de mim/ Existe alguém…”
Que a luta dos negros em nossa cidade, expressa por meio da resistência e busca de pertencimento, como magnificamente demonstrado neste Concurso de Beleza Negra, possa ampliar nosso entendimento sobre a existência de povos que ao longo da história foram escravizados, esquecidos e tratados como João-ninguém (nemo). Isso deve possibilitar a adoção de práticas inclusivas e a discussão de direitos e políticas públicas que garantam a igualdade racial.
(Vander André Araújo é advogado, filósofo e escritor / Fotos: Denis Pereira e Prefeitura BD)
Prezado, confesso que admiro e sou assíduo leitor de suas colunas, mas me chamou a atenção seu comentário de “nutrir expectativa quanto transformar um espaço como o antigo clube social em casa de cultura”, me desculpe mas sou totalmente contra.
A meu ver temos preocupações e demandas maiores no município e o aproveitamento daquele espaço teria que ser melhor pensado.
Nada tenho contra a cultura, merece sim um espaço, o que me diz do Sesc que vem se deteriorando a passos largos, porque não criar lá um espaço.
(Não vou entrar na discussão da mudança de UBS, que poderia entrar na pauta)
Nada a ver com o assunto, mas vou aproveitar, infelizmente não tenho voz neste espaço, poderia questionar por mim quando será reconstruído a entrada do sétimo batalhão?
Outra questão, de cunho importantíssimo, foi desapropriado alguns imóveis próximo a “Hemodiálise” na Praça Irmã Albuquerque para abertura de rua, será que uma casa de apoio para quem vem de fora poder, por exemplo, esquentar uma marmita, tomar água e até ir ao banheiro, não seria uma medida mais assertiva?
Passa lá pela manhã e veja quantas pessoas nos bancos e gramados, fazendo suas refeições e até passando a noite. Um consórcio com as prefeituras da região para construção e administração do espaço seria viável e prático.
Me desculpe por ter desviado um pouco sobre seu texto original, que aproveito para parabenizar, ficou maravilhosamente bem contextualizado, é que me chamou realmente a atenção o fato de aproveitamento do antigo clube para casa de cultura, acho que prioritariamente temos ações mais importantes a serem discutidas.
Parabéns e forte abraço!
Boa tarde, Pierre!
Obrigado pelo comentário!
A proposta de aproveitamento do Clube Social em Casa de Cultura foi deliberado por todos os participantes durante a Conferência Municipal de Cultura, em outubro, durante a discussão do eixo 2 – Democratização do acesso à Cultura e participação social, no nível municipal e consta do relatório da Prefeitura Municipal/Secretaria de Cultura de BD.
É uma proposta que considerei interessante e que gerou expectativa em mim, já que ainda não temos um espaço assim na cidade.
Obrigado,
Vander
Boa tarde, Pierre!
Sobre a entrada do 7. BPM, você já deve ter visto que as obras estão a todo vapor.
Com relação à sua sugestão da Casa de Apoio na região da Santa Casa, eu enviei e-mail para a presidente da Câmara BD, Sâmara, no mesmo dia que li seu comentário e na primeira sessão de 2024, você poderá acompanhar pelo youtube da Câmara, a nobre edil fez uma indicação ao Sr. Prefeito, para “verificar a possibilidade de designar uma Casa de Apoio nas imediações da Santa Casa para os acompanhantes dos pacientes…”
Muito obrigado pela participação!
Abraço,
Vander
Mais uma vez, sua aguçada percepção e sua sensibilidade nos fazem refletir e considerar muito do que a história esqueceu no passado. Uma reparação histórica, com o merecido reconhecimento aos que ajudaram a fazer deste país um lugar mais gracioso, mais forte, mais diverso e rico culturalmente, é o mínimo que se espera da sociedade brasileira como um todo. Felizmente alguns pequenos passos têm sido dado na direção desse desagravo. Ainda há muito pelo que lutar, há muito a se conquistar, há muito a amadurecer, mas cada iniciativa nesse sentido vem romper o que se escondeu a longo de séculos. Parabéns, querida Bom Despacho, pelo projeto e a todos que participaram. Parabéns, Vander, por sua bela colocação. Que o seu sonho seja concretizado. A cultura de um povo é sua identidade e deve ser tão valorizada para que não recaiamos nos mesmos erros do passado. E olha que temos muitos. Felicidades!
Obrigado, Sueli, pelo comentário! E que belas reflexões você nos proporcionou com ele. Fico muito feliz quando o texto reverbera e encontra ouvidos e olhos atentos!