Tecendo história com uma bordadeira Ocaia Avura

 

VANDER ANDRÉ – Filha da talentosa artesã Dona Lenita, Regina Celi de Deus Vieira Cavalcanti Silva nos recebeu calorosamente em sua casa, um agradável lugar onde seus pais viveram durante anos, com entrada pela Rua Lopes Cançado, conectada por um imenso quintal. Lá, tivemos a oportunidade de experimentar jabuticabas e amoras, antes de sairmos na rua Flávio Cançado Filho (antiga Rua do Céu) para explorar as memórias da sua infância em Bom Despacho, sua vida no Pará e sua participação no coletivo de mulheres bordadeiras de Bom Despacho, conhecido como Ocaia Avura. 

Conheci Regina durante o evento de reinauguração do Memorial Bom Despacho, que ocorreu em agosto. Foi nesse momento que ela começou a compartilhar comigo a cativante história do Grupo Ocaia Avura, algo que até então eu não tinha conhecimento, mas que imediatamente despertou meu interesse. Ela inicia sua história com um pouco de nostalgia: “Sou da roça Germano, filha de José de Deus Vieira (Zé do Coronel) e Lenita Maria Vieira, onde vivi até os dez anos e vinha estudar em Bom Despacho, no Coronel Praxedes, a cavalo e de charrete”. Ela se emocionou ao recordar que, desde jovem, a pressão social na época a impelia a desenvolver habilidades “próprias de uma menina prendada”, aprender “alguma coisa”, assim como sua mãe, tias, avó, todas mulheres bastante habilidosas em vários ofícios. Ainda menina aprendeu a pregar botão, fazer bainhas abertas/ajour e “brolha” nas barras das toalhas de pano de saco – tecido transformado como utilitários e adornos para as casas do meio rural. 

Aulas de bordado

Nos momentos livres, Regina fazia aulas de bordado no bazar-escola que funcionava ao lado da loja de tecidos do Seu Heitor Franco e Farmácia São José, onde hoje operam o Xuá Lanches e outros comércios. Dona Isa e sua amiga Dona Maria do Carmo Mota, entre outras artistas, ensinavam as maravilhas dos trabalhos manuais às meninas sem cobrar nada, com a condição de que cada aluna fizesse um para si e deixasse outro para o bazar. No caso de Regina, o ensinamento foi o bordado com a técnica do ponto matiz ou pintura de agulha no tecido de linho. Já no Ginásio, ela teve a oportunidade de aprender sobre desenhos e a fazer macramê com a saudosa Professora Dona Liquinha (Cornélia) durante as aulas de atividades artísticas. 

Vida na Amazônia

Formada em Turismo e Hotelaria, especialista em Educação Patrimonial, Regina Cavalcanti viveu 33 anos no estado do Pará, em Porto Trombetas, localizado a 875 km de Belém, a capital. Trata-se de um distrito na região amazônica, cercado por uma natureza exuberante na Floresta de Saracá Taquera, região de extração da bauxita pela MRN – Mineração Rio do Norte.

Esse cenário proporcionou oportunidade para pesquisa que levou Regina a trabalhar por muitos anos em empresas terceirizadas, como o Museu Paraense Emilio Goeldi, instituição científica que estuda sobre a Amazônia Brasileira, colaborando no resgate cultural da região do Alto Trombetas e entorno, além do empreendedorismo junto com o SEBRAE e STCP – Curitiba/PR. 

Em virtude do nascimento da filha, Regina ficou fora do mercado corporativo por oito anos. Nesse período, como proprietária de Ateliê, foi professora de macramê e tapeçaria de alto liso e criou a biblioteca comunitária Diversão & Cia no núcleo residencial Porto Trombetas, assumindo a responsabilidade, como voluntária, pelas aquisições próprias e doações dos amigos, independente de apoio público e privado por 18 anos. Além disso, Regina visitava comunidades para promover a leitura, informações de higiene bucal e vacinas promovidas pelos profissionais da saúde do hospital local, distribuição de material escolar e presentes em datas comemorativas, construindo laços de confiança com as comunidades. 

Regina trabalhou para que os nativos se tornassem conscientes da sua própria história. Contou com orgulho sobre o livro que o PEAP – Projeto de Educação Ambiental e Patrimonial produziu sobre educação patrimonial, que resultou do seu trabalho educacional de 2000 a 2018. Ela atendeu às comunidades quilombolas e ribeirinhas, crianças, jovens adultos e idosos com ações educativas, muitos dos quais eram analfabetos o que tornava o seu trabalho ainda mais desafiador. 

O grupo Ocaia Avura

Mesmo a distância, Regina acompanhava o trabalho da sua mãe Dona Lenita em Bom Despacho, que participava de um coletivo de mulheres bordadeiras chamado Ocaia Avura. O nome, sugerido por Ivone Cardoso e prontamente aceito por todas as participantes, foi uma homenagem a elas mesmas por estarem em aprendizado em horas de folgas dos seus afazeres domésticos e à casa onde se reuniam inicialmente, na Conjolo das Artes (ateliê e comércio de produtos artesanais) de propriedade da Iara Queiroz. Ocaia avura, palavras da língua da Tabatinga que evocam mulheres fortes, corajosas, todas aposentadas em busca de novos propósitos para realizar nas suas vidas, um ato de valentia. 

Ali elas se dedicavam a fazer trabalhos manuais, o frivolitê, crochê, tricô, bordado, entre outros. Essas atividades, além de terapêuticas, proporcionavam renda, pois deixavam os trabalhos elaborados no Ateliê Conjolo das Artes e comercializavam também, nas barracas da Feira Livre da Praça da Estação, montadas pela Emater, uma vez que a Berenice, funcionária de lá, também era aluna.

Em um dos reencontros de Regina, nas férias em Bom Despacho, a sua mãe Lenita e a Bete Braga pediram-lhe sugestão de projeto sobre o que poderiam fazer para presentear a cidade no seu centenário em 2012. Regina sugeriu bordar os pontos turísticos da cidade. Após discussões e conversas entre o grupo, tomaram conhecimento de que a Escola Coronel Praxedes também estava celebrando o seu centenário e acertaram parceria com as professoras. As Ocaias utilizaram os desenhos feitos pelos alunos dos diversos pontos turísticos de Bom Despacho e bordaram várias páginas, no tecido.

Paralelamente, Bete Braga com o apoio de Berenice da Emater, inscreveram o livro de tecido intitulado “Tecendo nossa História” para fazer parte dos projetos que participariam das comemorações do Centenário, sendo o livro programado para ser o primeiro evento a ser oferecido à comunidade bom-despachense em março de 2012, que ocorreu no antigo Clube Social. Foram cinco meses de trabalho e o livro de pano, com imagens retratando o passado e o presente de Bom Despacho, com cenas bordadas representando igrejas, escolas, vida rural, a Praça da Estação e tantos outros, foi concluído com 60 páginas de 57 cm de altura, 65 cm de largura, bordadas pelas integrantes do grupo. 

Patrimônio cultural

Durante a apresentação do livro, as Ocaias tomaram conhecimento de que faltavam os registros de patrimônios importantes da cidade: Santa Casa, o Tiro de Guerra, o selo do Centenário e a Praça da Estação e logo decidiram bordá-los para complementar o livro. D. Lenita, Regina e a Bete Braga toparam fazer, mas a saúde da Dona Lenita levou-a a uma cirurgia, quando ela acabou vindo a falecer. O projeto ficou paralisado por um longo tempo. Em virtude da sua aposentadoria, Regina se prontificou e veio terminar os bordados.

Nos seus primeiros momentos, o livro foi apresentado em várias escolas, ABAP, no Asilo, para a TV Integração, em projetos da Fundação Renova, Encontros de Bordados, educação e moda, gerando uma enorme satisfação entre as bordadeiras. A Berenice também fez uma apresentação na Emater, como resultado dos seus serviços. Depois, houve restrição dos encontros em virtude da pandemia da Covid 19. Desde então, o livro e o material bordado estão aguardando continuidade, sob a guarda de Regina e Bete Braga.

Retorno à arte do bordado

As bordadeiras, em especial Regina e Bete Braga, estão atentas aos diversos editais visando à publicação deste único exemplar bordado do trabalho coletivo do Grupo Ocaia Avura em formato impresso e aguardam com grande expectativa o apoio da comunidade empresarial e dos órgãos públicos, contando com a colaboração daqueles que possam contribuir. 

O grupo de 18 artesãs Ocaia Avura se reunia semanalmente, às terças, das 14 às 17 horas, quando elas faziam café com quitutes, trocavam experiências, receitas, rezavam na fé católica, fofocavam e, claro, produziam seus artesanatos manuais. Depois que saíram da Conjolo das Artes, passaram a se reunir na casa de uma delas, no Lions ou no antigo Clube Social e/ou na sala da Casa Paroquial. Com a morte de algumas delas, como a mãe da Regina, a Antonieta Assunção, Marta e Joana Araújo (no mês passado), os encontros ficaram adormecidos e o grupo parece ter perdido o foco. 

Para nossa satisfação e apreciação, elas avisam que têm intenção de retornarem firmes e fortes com a arte do bordado em Bom Despacho. 

(Vander André Araújo é advogado, filósofo e escritor / Foto do alto:Janete Fontinelle)

 

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