Reinado une história, cultura, religião, música e redenção

ROBERTA GONTIJO TEIXEIRA – Fiz um texto relatando a minha estreia no Reinado, que foi publicado aqui no portal iBOM logo no início da festa. Ouvi comentários lindos e gentis dividindo comigo a experiência narrada, mas o comentário de um senhor, que não conheço, me chamou particularmente a atenção. Ele foi categórico em dizer que tudo aquilo era um absurdo: adorar imagens e que quem deveria ser louvado era Jesus Cristo.

Imagino que cada um avalie a festa do Rosário a partir de suas vivências e leituras de mundo. Para alguns é um ato de fé, para outros libertação, manifestação cultural, oportunidade de festejar e relacionar-se mais estreitamente. Ou, ainda, para os mais alheios, apenas mais um dia de feriado.

Independente do que represente para cada pessoa, a festa do Rosário não pode ser lida ou limitada a uma adoração de imagens e mastros. Ela é a expressão cultural de um povo, o lugar e a forma que encontraram para expressar sua fé. É um emaranhado de simbologia, que envolve religião, história, cultura, música, redenção. 

Acho a fé maravilhosa, mas acho a empatia, o amor ao próximo e a possibilidade de evolução ainda mais fantásticos.

Penso que todo mundo deveria ler pelo menos um dos livros da trilogia “Escravidão”, escrita por Laurentino Gomes, e se colocar no lugar dos negros desse País.

Vivência intensa

Aliás, esse foi o único senão que vi na festa. Senti falta de um discurso um pouco mais enfático sobre o que foi a escravidão, a opressão que sofreram e sofrem os negros, o racismo estrutural, ainda tão presente entre nós e a expressão do que é a verdadeira simbologia da festa do reinado. Mas, quanto ao resto foi, ao menos pra mim, tudo perfeito.

Os dias que se seguiram à festa foram de intensas vivências. Cantos fortes, convivências novas, experiências profundas e um cansaço incomum. Incomum porque não era apenas um cansaço do corpo. Minha alma estava vivendo coisas muito fortes e revisitando partes da história de um forma muito real. Como se eu fosse a espectadora de uma viagem pelo tempo, pelas dores da escravidão pelos cânticos das Senzalas, pelas batidas dos tambores e expressões de fé. 

Fui diariamente à casa da dona Sebastiana, naqueles dias de reinado. Lá vivenciei tradições, rituais de proteção, danças, rezas e cantos. Saboreei o café, as comidas, as companhias e pude, ainda, ver fotos, ouvir relatos e catalogar relíquias. Sem contar a celebração constante das preces e da fé.

As roupas eram sempre lindas, os turbantes na cabeça, os saiotes, os instrumentos com fitas coloridas, tudo ornando com as vestes sempre muito brancas. 

Quando saíamos de lá, geralmente para as casas de pessoas que se prepararam e iam nos receber, era ainda mais impressionante. Como se levássemos pequenas graças em forma de canção e, através de nós e de todo aquele ritual realizado, os festeiros se sentiam mais próximos de nossa Senhora e, claro, nós também. Quase sempre o ritual nas casas dos festeiros era realizado sob o choro de quem segurava a coroa ou a bandeira, pessoas que, depois da cerimônia apresentada, nos serviam, amorosamente, um delicioso café, jantar ou almoço.

Nunca, em nenhum dos dias, deixamos a casa da Dona Sebastiana ou voltamos a ela sem rezar, seguir os rituais exigidos e nos apresentarmos numa rua deserta. 

Exausta e rouca

Como disse, vivi experiências incríveis. Entrei na Capelinha da Tabatinga, onde nunca havia entrado, carregamos São Benedito de lá até a Capelinha da Cruz do Monte, onde, antes, eu também só conhecia por fora. Andei por várias daquelas vielas da Tabatinga, conheci a sede do Quilombo e visitei lugares onde eu jamais havia passado em Bom Despacho. 

Quando os dias terminavam, bem tarde da noite, eu já estava exausta e rouca, mas, ainda não era hora de parar. Tínhamos que fazer a “entrega da bandeira”, dançávamos, rezávamos e encerrávamos os rituais já com a noite alta. 

O encerramento da festa, no domingo, foi com a procissão, que eu também nunca antes tinha acompanhado, apenas visto passar por um trecho do caminho. Dessa vez, entramos na Igreja do Rosário, ainda de dia, cantamos, pegamos São Benedito e com ele subimos, junto com todos os outros cortes, em direção à Praça da Matriz. A certa altura da procissão, começou uma chuva fina e constante. Inicialmente eu, como boa mineira interiorana, filha de pais protetores, pensei: vou gripar. Kkkk. Olhei para pai Tõe, a Dona Maria e Sr. Eustáquio, reis do Moçambique, já em idade avançada, com aquelas capas pesadas e firmes no passo e na intenção, e pensei comigo mesma: melhor parar de dar chilique. A chuva aumentou um pouco e chegamos no alto da rua Dr. Miguel ensopados, mas dançando e cantando ao som dos instrumentos e da nossa voz. A sensação que se tinha era que aquela chuva havia cuidado de, não apenas umedecer o ar seco, mas também de lavar os pecados, as dores e a alma. Foi como se ela viesse para coroar e purificar tudo que estava sendo ofertado. Uma verdadeira chuva de bênçãos.

Na segunda-feira, já com a missão quase cumprida, nos reunimos um pouco mais tarde, às 13h, e seguimos para a sede da Associação e depois para a pracinha do Rosário, para a descida dos mastros. 

Foi lindo demais. Numa praça lotada e com todos os cortes presentes, cada Moçambique fez a descida de seu mastro ao som de seus cânticos e sob uma chuva de fogos de artifícios. Após todos os mastros descidos, cada grupo se juntou aos seus na praça e cantou, louvou, rezou. Penso que quem estava ouvindo à distância, ouvia um mistura de tambores e batidas desencontradas, mas dentro de cada grupo a música era uníssona, entoada por todos e cantada com força e fé. Não víamos nem ouvíamos os outros cortes que estavam grudados em nós, tão forte era a celebração do entorno. Era o fim de mais uma festa do Rosário. Festa da qual pela primeira vez, eu, graças a Deus, participei. Que Nossa Senhora do Rosário ajude-nos a, cada vez mais, ficarmos livres dessas tristes correntes e sentimentos que fizeram e ainda, de alguma forma, fazem parte da nossa história que é a escravidão e a opressão de um povo em função da sua cor. 

Salve Maria, que é como se saúdam os participantes da Festa. 

(Portal iBOM / Roberta Gontijo Teixeira é bacharel em Direito, ambientalista e servidora pública federal / Fotos arquivo)

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