“Eu canto porque o instante existe”

VANDER ANDRÉ – “Nos rubores fulgentes da aurora, é tão belo o porvir prelibar”. 

Não se assuste, eu também fazia essa cara de desentendido nos anos 1980, quando cantava o glorioso hino da Escola Estadual Miguel Gontijo. Com uma diferença: eu não tinha o Google à mão para, em questão de segundos, acessar o oráculo do século 21 e descobrir o significado de tão eruditas palavras. Para que os versos do compositor, o saudoso Professor Majela, passassem a fazer algum sentido para mim, e parassem de travar a minha língua, corria até a biblioteca atrás de um pesadíssimo Aurélio, o nosso “pai dos burros” de então e saía de lá com os significados e ares de professor. 

O educandário, que pertence à rede estadual de ensino, completou recentemente 73 anos de história e prática educativa. Recebeu, também nos últimos meses, a visita de uma deputada estadual divinopolitana que apontou e pleiteou, em vídeos na rede social, as necessidades urgentes de manutenção e reparos nas suas instalações. 

Exame de seleção

Lembro-me de que o acesso à quinta série no colégio, após os anos primários no grupo escolar, era concorridíssimo e tínhamos que nos submeter ao temido exame de seleção. Apesar de eu ser oriundo da Escola Martinho Fidélis, onde alunos carentes, em piores condições financeiras estudavam, e que atendia aos estudantes da Cruz do Monte, Tabatinga, ruas Pedro Simão Vaz, do Capim, Capivari e adjacências, alcancei uma das melhores classificações no exame. O resultado deve ter causado espanto nos atentos professores que nos recebiam naquele início de fevereiro, com curiosidade, em salas discriminadas A, B, C… e por aí vai, dependendo da pontuação do aluno no exame. 

A foto do alto da página mostra professores que marcaram época em Bom Despacho. Em pé, da esquerda para a direita: Júlio Malachias, Geraldo Mascarenhas, Auxiliadora Guerra, Paulinho Caixote, Clarinda Guerra, José Calais e Elvino Paiva. Sentados, da esquerda para a direita: Joesse, Liquinha, Nicolau Leite, Léa e Professor Majela.

Éramos distribuídos em salas de acordo com o nosso grau de intelecção e todo mundo sabia que os mais sabichões estavam na almejada turma A. Tomávamos conhecimento, nos bastidores, da dificuldade da coordenação para escalar professores para as turmas que beiravam a segunda vogal do alfabeto. 

Uma vez que já estávamos acostumados à rotina do colégio, iniciávamos o dia enfileirados por ordem de tamanho, uniformizados, morrendo de frio, nas gélidas manhãs de maio, quando ensaiávamos no pátio a nossa marcha para o desfile cívico-militar do 1º de junho. 

Músicas dos hinos

Apesar dos poucos anos e da ingenuidade infantil, já compreendia que o mundo seria melhor se vivêssemos numa democracia. Eram tempos sombrios, não podíamos questionar muita coisa e pouco se falava sobre a ditadura vigente. Entretanto, é uma hipótese que levanto, parecia que suas heranças metafóricas faziam parte do nosso cotidiano: éramos submetidos a provas, ditados, morríamos de medo de tomar bomba, o quadro era negro e para casa, tínhamos dever, castigo, anotávamos nome de colegas que conversavam…

Como não tinha garbo e altura suficientes, eu não poderia portar as bandeiras no tão aguardado desfile; nem habilidade artística, não participaria da fanfarra; nem jeito para o esporte, não poderia fazer danças com os bambolês, que eram reservados para as meninas do jazz e balé. Restava então para mim e mais uma dezena de outros colegas nos dedicarmos à marcha, num dos pelotões da escola, com short azul marinho ou saia drapeada também azul e camiseta Hering nova, branca, tênis kichute preto, repetindo os passos até cansar: um-dois, um-dois… feijão com arroz. 

Eu gostava da sonoridade das músicas dos hinos, que tinham uma fórmula épica, parecidas com os louvores que ensaiávamos na catequese, sob reguada repressora da Irmã Genoveva, e saía cantando em casa, repetidas vezes, com olhar irônico dos meus parentes. 

Homenagem a Dr. Miguel

Penso, e me orgulho, que devo ser um dos poucos na cidade que ainda se recorda “de cor” das estrofes do hino, de autoria também do Professor Majela, que era dedicado ao patrono da Escola, o venerado médico Doutor Miguel. E me permito deixar alguns trechos curiosos aqui, para que mais alguém possa me ajudar a esclarecer o significado de tanta poesia para o médico de homens, mulheres e das “almas” bom-despachenses ainda na metade do século 20: 

“Salve, Miguel, Miguel, quem é como o Senhor? O teu nome nesta escola vem sozinho sem Doutor, mas perfuma e não se evola, é perene o seu valor” (nota-se aqui a simplicidade do saudoso médico e a necessidade de permanecermos contando sua história, sem necessitarmos recorrer a títulos honoríficos, mas reconhecendo sua salutar prática medicinal).

“Que saudades do Miguel, com o seu Fordinho lá na Praça, fonfonando sem tropel, é a bondade que perpassa” (aqui percebemos a sua popularidade e simpatia, além do status de motorista, que deveria causar inveja a muitos varões naqueles tempos). 

“Que saudades do Miguel, com seu cigarro de palha, prescrevendo no papel o remédio que não falha” (mesmo entregando o vício do doutor, a letra ressalta a eficácia das suas prescrições). 

Hinos fizeram parte da minha formação educacional e eu encarava o canto como expressão artística, uma possibilidade de desenvolver habilidades de comunicação oral e escuta, mesmo em períodos de adversidade. E isso, em 1982-1984, nos tempos que antecederam o grito de “diretas já”, na assustadora “era de calar a boca, a era de falar à força”, como escreveu o poeta concretista Mário Chamie. Isso às vésperas de uma eleição que traria de volta o regime democrático para o Brasil.

Ainda hoje me vêm à memória as letras dos hinos, das ladainhas, dos louvores católicos que ouvi e cantei ao longo da minha vida. Cecília Meireles, a poetisa, escreveu que cantava porque o instante para ela existia e assim sua vida se completava. Assim também eu paro, reflito e escrevo, em todos os momentos da minha existência, porque afinal a história continua e deve ser contada e, por que não, cantada: “Gente nasce, gente cresce, gente sara em suas mãos, Bom Despacho não se esquece: te encerrou no coração”.  

(Portal iBOM / Vander André Araújo é advogado, filósofo e escritor / Fotos: Arquivo)

3 thoughts on ““Eu canto porque o instante existe”

    • 30 de agosto de 2023 em 13:23
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      Muito obrigado, Sandra!

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      • 18 de maio de 2024 em 15:09
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        Eu canto porque a vida existe.A melodia se desdobra e confunde diante do cenário histórico de tamanha poesia! Ah eu canto porque conheci os sons da harpa e do violão, em cada verso do escritor Vander! Se as folhas emudeceram ,voraz minha voz e partituras, ao reviver tanta beleza (as antigas narradas pelos idosos ).Belíssimo texto!

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