Santiago de Compostela pelo Caminho Francês
A peregrinação é um costume antigo. Contudo, para os cristãos, elas começaram com a viagem de Santa Helena a Jerusalém. Helena, imperatriz e mãe do imperador Constantino, aos 78 anos, foi a Jerusalém em penitência por um pecado do seu filho. Esta viagem marca o início ao costume das peregrinações cristãs. Seu filho, o imperador Constantino, era batizado e tornou o cristianismo uma religião legal em todo o império romano. Contudo, quando mandou matar seu próprio filho, sua mãe Helena decidiu ir a Jerusalém em busca do perdão para tão grave pecado. Nascia o costume da peregrinação.
FERNANDO CABRAL – Iniciei minha terceira peregrinação a Santiago de Compostela. Desta vez seguindo um dos caminhos mais tradicionais, e mais antigos, o Caminho Francês. Este caminho é também conhecido como Via Láctea porque os antigos peregrinos que viam do leste europeu se guiavam por ela para chegarem até Santiago.
Mas, há outra explicação para o nome. Segundo antigas lendas espanholas e portuguesas, a Via Láctea se formou pela poeira levantada pelos pés dos peregrinos. Por isto a Via Láctea é também chamada de Caminho de Santiago.
O certo é que o Caminho Francês começou a ser percorrido na época do imperador Carlos Magno. Depois de unificar quase toda a Europa, Carlos Magno tinha interesse em afastar os mouros que ainda ocupavam a Península Ibérica (Portugal e Espanha). Na época os cristãos ocupavam apenas uma estreita faixa de terra no norte da Espanha, especialmente na Galiza. O restante do território era dominado pelos muçulmanos. A criação do Caminho Francês incentivava a criação de fortalezas, a ampliação das vilas, a fundação de hospitais e de mosteiros. Tudo isto ajudava a consolidar o domínio dos cristãos na região.
Com o tempo, os cristãos foram se fortalecendo e avançando para o sul, reconquistando as terras que hoje formam a Espanha e Portugal.
Mas voltemos à história de Santa Helena, que iniciou o costume da peregrinação.
Por causa de intriga de sua segunda mulher, Constantino mandou matar seu próprio filho, Crispo. Esta tragédia familiar deixou a imperatriz Helena profundamente magoada e triste. Para lavar os pecados do filho, ela decidiu fazer uma penitência indo até a Terra Santa. Podemos imaginar quão penoso foi para uma senhora de 78 anos percorrer os quase dois mil quilômetros que separavam Constantinopla de Jerusalém.
Mas ela foi.
Em Jerusalém ela mandou construir duas basílicas, uma em Belém, outra no Monte das Oliveiras. São as basílicas da Natividade e da Ascensão. No monte Gólgota, mandou destruir os edifícios romanos de cultos pagãos. Ali também ela teria encontrado a cruz em que Jesus havia sido crucificado. Dela retirou os três cravos e mandou um para seu filho Constantino. Constantino o mandou cravejar em sua Cora de Ferro.
Desta forma, a Imperatriz Helena, hoje conhecida como Santa Helena, deu início ao costume da peregrinação. Dali em diante, católicos do mundo todo começaram a peregrinar até a Terra Santa.
Aliás, palavra peregrinação significa caminhar pelos campos. Foi exatamente o que Santa Helena fez. Ainda hoje é o que os peregrinos fazem: eles caminham pelos campos em busca de um lugar sagrado.
Nos dois ou três séculos seguintes após a morte de Santa Helena, Jerusalém e Roma se tornaram os destinos mais procurados pelos peregrinos. Os peregrinos que iam a Roma passaram a se chamar romeiros.
Mas, com a decadência do Império Romano os cristãos passaram a ter dificuldades para chegar a Jerusalém. Embora Constantinopla ainda estivesse sob domínio romano e cristão, os turcos passaram a controlar a passagem terrestre para o Oriente Próximo e os muçulmanos haviam retomado Jerusalém.
Neste ponto surge a peregrinação até Santiago de Compostela. Três coisas favoreceram isto: o interesse de Carlos Magno em fortalecer os enclaves cristãos no norte da Península Ibérica; o reconhecimento, pela igreja católica, de que o corpo do apóstolo São Tiago Maior estava enterrado em Compostela, e as sucessivas vitórias contra os muçulmanos que ocupavam as terras que são hoje Portugal e Espanha.
Nos seus combates contra os mouros, os espanhóis passaram a contar com o aparecimento milagroso de Santiago. Segundo os relatos da época, ele aparecia montado num cavalo branco e ajudava os cristãos a derrotarem os muçulmanos. Por isto, na Espanha, São Tiago é também conhecido como Santiago Matamoros.
Mas há um quinto acontecimento que favoreceu o estabelecimento do Caminho de Santiago Francês: as cruzadas. A história de Santiago se difunde ao mesmo tempo em que são formadas as cruzadas que vão em busca da reconquista de Jerusalém pelos cristãos. Muitos exércitos cruzados usam portos na costa oeste de Espanha e Portugal. Ao mesmo tempo, os Cavaleiros Templários e os Hospitalares constroem mosteiros e fortalezas, aumentando a segurança dos peregrinos.
Assim, muitos dos Caminhos de Santiago usados ainda hoje, foram criados no início da idade média. O Caminho Francês é um deles. Por ele passavam peregrinos vindos de todas as partes da Europa.
Hoje o ponto de partida costuma ser a cidade de Saint-Jean-Pied-Port, no sopé dos montes Pireneus, na França. Dali se cruza para Roncesvalles, na Espanha, e se segue pela Via Láctea até Santiago de Compostela.
Comemoração do centenário
Se meu pai fosse vivo, teria feito 100 anos no dia 21/7. Eu estou fazendo 73 anos neste 23/7. Em comemoração ao centenário de nascimento do meu pai, e aos meus 73 anos, vou refazer a rota dos antigos peregrinos da Idade Média. Comecei no Santuário de Nossa Senhora de Lourdes, na França e segui de carro até Saint-Jean-Pied-Port. De lá sigo a pé até Santiago de Compostela.
Quero passar pelos mesmos trilhos, cruzar os mesmos rios, dormir nos mesmos lugares em que caminharam e dormiram os primeiros peregrinos que palmilharam este caminho quando ainda eram dominados pelos mouros.
A jornada de quase dois mil quilômetros de Santa Helena a Jerusalém, quando ela tinha 78 anos mostra que distância e idade não devem nos intimidar. Perto deste feito, não parece muito uma jornada de 850 quilômetros para quem tem apenas 73 anos. Serão de 30 a 40 dias numa das rotas espirituais mais antigas do mundo ocidental.
Venha comigo. Acompanhe esta jornada pelos próximos dias. (Portal iBOM / Fernando Cabral é licenciado em Ciências Biológicas, advogado, auditor federal e ex-prefeito de Bom Despacho / Fotos: Arquivo Fernando Cabral) – Texto atualizado em 23/07/2023.