Cento e onze anos: tempo de conciliação

Bom Despacho celebra 111 anos numa época em que o Brasil vive uma profunda crise de divisionismo. Pelo que me lembro, ou pelo que já aprendi nos livros, nunca tivemos algo assim. Divergências, sempre houve. Republicanos versus monarquistas, parlamentaristas versus presidencialistas, conservadores versus progressistas. Mas nunca faltou entre os grupos a vontade de negociar, a disposição para transigir, o reconhecimento do outro como interlocutor. Mas, a cizânia que se estabeleceu no Brasil de hoje parece ter afastado a disposição para transigir. Principalmente, parece ter eliminado o reconhecimento do outro como interlocutor. Como um igual que tem ideias diferentes.

 

Vivemos extremos na política brasileira. Parece que perdemos a capacidade de argumentar. Em vez de defender nossas ideias, estamos atacando as pessoas. Um agride de um lado; outro agride do outro.

Não há troca de ideias; há troca de ofensas.

Tampouco se dá importância aos fatos. O que tem prevalecido são narrativas mal-ajambradas cujo único propósito é desqualificar o próximo. Argumentações toscas, infantis, são apresentadas como verdades absolutas.

A gentileza, a civilidade que nossas mães e nossas professoras nos ensinaram foram defenestradas. O hábito de agredir tomou assento permanente nas casas políticas, mas adentrou também as escolas e os templos religiosos. O respeito ao próximo também saiu pela janela.

O exemplo tem vindo de cima. A Câmara dos Deputados e o Senado Federal se tornaram um espetáculo de horrores. Deputados se digladiam sem observar as mais comezinhas regras de decoro. Um se veste de mulher e ataca as mulheres; outro quer resolver na pancada o que não conseguiu resolver com argumentos; outros tantos gritam, como se urros, berros e ameaças pudessem fazer algum bem ao Brasil.

Deputados e senadores estão levando o palco do Congresso para as redes sociais. Elas viraram uma terra de ninguém. Um mundo sem lei nem grei onde destemperos, ofensas e agressões são pratos triviais servidos a vinte e quatro horas por dia.

Quando questionados, os deputados e senadores dizem que estão usando seu direito de livre pensamento; estão manifestando suas opiniões.

Será?

Opinião, no sentido constitucional, é a manifestação de um sentimento, de uma crença. É um gostar ou não gostar; é achar certo ou errado; é afeiçoar ou desafeiçoar; é ter simpatia ou antipatia; é acreditar ou não acreditar. Exatamente por ser sentimento, podemos ter opinião sobre tudo e qualquer coisa. Para isto não há limites. Podemos achar uma proposta boa ou ruim; podemos achar um governo bom ou ruim; podemos achar uma ideia boa ou ruim.

Opinião não exige prova; não se sujeita ao critério de certo ou errado. Opinião não é fato. Opinião é irmã xifópaga do achismo.

Fato, porém, é diferente de opinião. Fato é um fenômeno; é algo que se observa e que pode ser demonstrado. Aliás, é algo que exige demonstração. Exige prova. E exige prova que possa ser aceita pelos especialistas de cada ramo.

Por exemplo, a prova de um fenômeno físico deve ser aceita pelos físicos; a prova de um fenômeno químico deve ser aceita pelos químicos, as provas de um fato jurídico precisam ser aceita pelos juristas.

Opinião não se discute, acata-se. Por isso os romanos já dizem: de gosto e de cores não se discute. Opinião não pode ser negada. Opinião não se submete ao contraditório. Não há opinião falsa ou verdadeira. No máximo ela pode ser boa ou má.

Fato é diferente. Fato está sujeito ao contraditório. Qualquer um que anuncie um fato pode convocado a provar o que diz. A existência de fatos pode e deve ser discutida. A alegação de um fato se sujeita ao contraditório.

Contudo, no Brasil de hoje, nossos políticos têm se mostrado incapazes de distinguir o que é fato e o que é opinião. Estamos retroagindo à época de Galileu Galilei, quando as autoridades postulavam o que era fato e todos tinham que se submeter, sob pena de serem queimados numa fogueira.

Por exemplo, achar que nosso Planeta Terra é feio ou bonito é questão de opinião. Contudo, dizer que a Terra é plana é contrariar fatos. Há inúmeras provas de que a Terra é redonda. Dizer que a Terra é um paraíso ou um vale de lágrimas é matéria de opinião, mas dizer que o sol gira em torno da Terra é ignorância, pois já está demonstrado o fato de que é ela quem gira em torno do sol.

A distinção entre fato e opinião é fundamental para sabermos o que nossa Constituição e nossas leis protegem e o que elas não protegem. Caso contrário, vamos continuar enfrentando os problemas morais e legais que estamos enfrentando: tantas pessoas acharem que podem dizer o que quiserem, sobre quem quiserem, e que isto está amparado pela liberdade de expressão.

Não está!

Qualquer um pode gostar ou não gostar; elogiar ou criticar; ser a favor ou ser contra. Para isto, nenhuma prova é necessária. Mas, quando se imputa um fato a alguém, aí não é mais matéria de opinião, é coisa que requer prova. Por exemplo, dizer que fulano é um péssimo governador ou que é um bom governador é opinião. Mas, dizer que o governador bate na mulher não é questão de opinião, é questão de fato; exige prova. E, se não houver prova, comete-se um crime contra a honra.

Mas não é só: agredir alguém com palavras, lançando impropérios, xingamentos, insultos também não é opinião, é injúria, um crime tipificado no Código Penal Brasileiro e em quase todos os códigos penais do mundo.

É esta visão equivocada que confunde opinião com imputação de fato e com injúria que trouxe o Brasil a esta situação de profundo divisionismo. Este divisionismo está corroendo nossa civilidade. Precisamos reaprender a respeitar a opinião alheia. Principalmente, precisamos reaprender a respeitar o próximo. Não precisamos concordar, mas precisamos respeitar.

Devemos reaprender a apresentar nossas ideias com respeito. Precisamos reaprender a conversar, tanto pelo prazer de fazê-lo, quanto pelo prazer de aprender. O divisionismo e os insultos empobrecem e embrutecem o Brasil.

Por isto, neste aniversário de 111 anos, o presente que desejo para Bom Despacho é que amigos voltem a ser amigos e possam se sentar para conversar sem agressões; é que primos e irmãos possam se sentar em volta da mesa da cozinha da casa de suas mães e possam trocar ideias como se fazia antigamente; é que o convívio amistoso e respeitoso se restabeleça mesmo entre aqueles que têm ideias divergentes quanto ao que é melhor para o Brasil e para Bom Despacho.

Este é meu sonho, e meu sonho é o presente que desejo para Bom Despacho. Que venha o tempo de conciliação. Que renasça o tempo em que possamos trocar gentilezas e ideias sem hostilidade, com respeito e alegria. (Portal iBOM / Foto meramente ilustrativa).

Fernando Cabral

Fernando Cabral é licenciado em Ciências Biológicas, advogado, auditor federal e ex-prefeito de Bom Despacho

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