O real se revela é no meio do Caminho

 

Um está sempre no escuro, só no último derradeiro é que clareiam a sala. Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia. – Guimarães Rosa.

FERNANDO CABRAL – Caminho de Santiago: uma tradição de mais de mil anos que muitos garantem lhes ter trazido revelações inefáveis e transcendentais. Inefáveis, são. Garanto. Transcendentais, não sei. Se me permitem apelar mais uma vez para o grande mestre mineiro, “eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa”.

Assim sou: desconfiado por demais. Talvez demais até para um mineiro para quem desconfiar não é lição aprendida; é coisa de sangue e berço mesmo.

Digo isto porque, o que vi e o que pensei ter visto na minha caminhada de 564 quilômetros desde o Santuário de Fátima (Portugal) até a Catedral de Santiago, em Compostela (Espanha), me tocou de formas diversas. Dia após dia o real foi-se dispondo para mim: ora se manifestando para o espírito apenas, de forma silenciosa e invisível; ora entrando pelos olhos e ouvidos, trazido pelas paisagens, pelo murmurejar das águas, pelo chilreio dos pássaros. Aqui e ali, pela presença de pessoas tão mortais e desamparadas como qualquer um de nós. Talvez, quem sabe, também na busca da manifestação do real nesta travessia findável, mas incessante por este vale de lágrimas que também nos dá prazer e contentamento.

Eu estava já no meu quarto dia de caminhada quando atinei para uma coisa trivial: os nomes comuns, simples e pitorescos de tantas ruas por onde eu vinha passando.

Portugal é um país com numerosos casais, póvoas, aldeias, vilas, freguesias, cidades. Por mais que o Caminho de Santiago fuja das regiões urbanas, não é possível escapar de todas. Além disto, por aqui é comum as ruas se estenderem por quilômetros além da área urbana. Por isto nosso Caminho percorre muitas ruas. Então, é impossível não notar seus nomes. Assim, logo percebi como são funcionais e históricos.

São funcionais, porque estão associadas a coisas, acontecimentos, profissões, atividades que se realizam ali ou que a elas as ruas conduzem. Alguns nomes estão ligadas à topografia ou ao próprio avanço da urbanização. São nomes com valor histórico porque registram momentos vividos pela comunidade. Assim, encontramos nomes como Rua das Escolas, Rua da Fábrica, Rua da Fonte, Rua do Padre, Rua de Cima, Rua Velha, Rua da Serpente, Rua de Baixo. Por aí vão. São nomes ligados a fatos, pessoas, profissões e acontecimentos. Registram o passado; são nomes históricos.

A cada placa de rua que eu lia neste Caminho, eu me lembrava dos antigos nomes de regiões e ruas de Bom Despacho: Cruz das Dores, Cruz do Monte, Rua do Céu, Larguinho, Rua do Matadouro, Rua da Biquinha, Rua da Fábrica, Beco da Chácara, Quenta Sol, Tabatinga, Arraial dos Lobos, Praça da Estação, Amurada do Favuca, Praça da Matriz, Rua da Linha, Beco do Moacir, Campinho do Padre, Pasto do Antenor, Rua da Olaria, Praça do Cemitério e o tão poético e descritivo Jardim Sem Flor!

Hoje, são quase todos nomes esquecidos. Quando os últimos de nós – agora setentões e oitentões – morrermos, não restará memória da cidade desses tempos. É uma lástima.

Professor Tadeu: lutando pela preservação da história da nossa cidade

Mas há pessoas que não desistem. São lutadores. Um exemplo é Tadeu Teixeira. Desde sempre ele tem lutado pela preservação do nosso passado, da nossa memória, da nossa história. Assim, a cada rua por onde eu passava, eu me lembrava do Professor Tadeu, que recentemente completou 80 anos. É a ele que presto minhas homenagens neste artigo de hoje. E, por intermédio dele, a todas as pessoas que acreditam que para vivermos o presente e construirmos o futuro não precisamos destruir o passado. Mais importante: não devemos fugir dele ou ocultá-lo, mas acolhê-lo como raiz que foi. Raiz que nutriu a cada um de nós e à sociedade em que vivemos, da mesma forma que hoje somos as raízes do que virão amanhã.

As fotos anexas são uma pequena amostra das duas centenas de placas de rua que fotografei no meu caminho, sempre lembrando de Bom Despacho e do Professor Tadeu.

Afinal, não devíamos nos esquecer jamais aquilo que nos ensinou o mestre do nosso Grande Serão mineiro: Tudo que já foi, é o começo do que vai vir. (Portal iBOM / Texto e fotos: Fernando Cabral).

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