Semelhanças sociais entre gripe espanhola e Covid-19
Hoje se sabe que a gripe espanhola que matou dezenas de milhões foi provocada pelo vírus A/H1N1. Até hoje ele nos visita anualmente e ainda mata algumas dezenas de milhares mundo afora. A covid-19 é provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2. Estes dois vírus têm muitas coisas em comum. Primeiro, claro, o fato de serem vírus. Segundo, o fato de poderem matar. Terceiro, o fato de se propagarem rapidamente, principalmente de pessoa a pessoa. Quarto, a capacidade de ser fonte infinita de boatos, mentiras e remédios milagrosos. Foi assim na época da gripe espanhola; tem sido assim com a covid-19.
Primeiro, um esclarecimento científico e histórico. Em 1918 não era possível identificar o agente causador da gripe espanhola. No entanto, ele foi identificado em 2005 graças aos avanço da ciência e também ao corpo de uma mulher que morreu com a doença em 1918, no Alasca. Enterrada no gelo, no corpo dela foi preservado. Desta forma, pesquisadores da Escola de Medicina Monte Sinai, de Nova Iorque, conseguiram identificar o A/H1N1 como o vírus que causou a gripe espanhola.
Este é o mesmo vírus que ainda nos visita todos os anos, e todos os anos mata algumas dezenas de milhares de pessoas mundo afora.
Vamos achar um culpado?
Um problema comum na humanidade é buscar a culpa no próximo. Mesmo para fenômenos naturais como os raios, as enchentes, as doenças viróticas e bacteriológicas, com frequência vemos pessoas tentando atribuir culpa a alguém. O culpado pode ser país, uma nação, uma pessoa. Mesmo no mundo moderno onde a ciência e a racionalidade deveriam dominar, isto ainda acontece.
O nome da gripe (gripe espanhola) exemplifica sito. Na verdade, a gripe não é espanhola e não tem nada a ver com a Espanha. O que se sabe é que ela surgiu em 1917 entre soldados americanos e ingleses que combatiam na Primeira Guerra Mundial. Os cientistas não conseguem dizer com certeza se ela nasceu entre os soldados que combatiam na Europa e dali veio para os Estados Unidos; ou se nasceu nos quarteis americanos e dali foi transferida para as frentes de combate na Europa.
No entanto, a gripe ficou com o nome de “espanhola”.
O motivo é prosaico: os jornais dos países em guerra estavam censurados. Eles não podiam noticiar a existência da doença que estavam matando milhares por dia. No entanto, a Espanha não estava em guerra e seus jornais não estavam sob censura. Portanto, eram os únicos a noticiarem o avanço da doença. Assim, como no início só eles falavam sobre a pandemia, a gripe ganhou o nome de gripe espanhola. Isto deu a entender que a gripe havia começado na Espanha.
Hoje, tem gente tentando dizer que a covid-19 é uma doença chinesa. No entanto, a família de coronavírus foi identificada há quase 90 anos e não tem nenhuma relação específica com a China.
Aliás, como curiosidade, a gripe espanhola, que assolou o mundo quase todo, não chegou à China em 1918.
Tentativa de ocultação
Outro aspecto comum entre a gripe espanhola e a covid-19 é a negação. Em 1918 os governos ocultaram os fatos e negaram a doença até que dezenas de milhões de cadáveres tornaram impossível esconder o que estava acontecendo. Só no Brasil foram mais de 300 mil mortos para uma população de menos de 30 milhões. Entre os mortos, o presidente da república Rodrigues Alves.
Mesmo depois que já não era mais possível ocultar a doença, havia a tentativa de minimizar seus efeitos. Ou seja, tornar uma pandemia com milhões de casos e milhões de mortes em “gripezinha”.
Mas isto não dá certo quando os mortos se acumulam. Então, a próxima medida é culpar a imprensa. Dizer que ela exagera, que mente, que só mostra o lado ruim das coisas. Isto aconteceu em 1918 e está acontecendo em 2020.
Finalmente, há também a descarada manipulação de dados para ocultar os fatos.
Portanto, também neste aspecto muitos países repetem com a Covid-19 o que aconteceu com a gripe espanhola: ocultam ou minimizam a relevância da doença e das mortes.
Medicamentos milagrosos
A gripe espanhola deu origem a vários medicamentos milagrosos. Nenhum deles funcionou, mas as farmácias ganharam dinheiro. Em 1918, entre todas as poções milagrosas que preveniriam ou curariam a gripe estavam o vinagre, o limão com sal, o quinino.
O quinino foi o de maior fama e o de maior uso. A recomendação era usar “qualquer sal de quinino”. É esta recomendação para uso intenso do quinino que tem o cheiro mais forte de coisa velha e rançosa quando vemos as “recomendações” atuais para que se use a cloroquina e a hidroxicloroquina como preventivo e curativo da covid-19. Afinal, estes são dois sais de quinino. Não deu certo em 1918 e certamente não está dando certo agora. Aliás, agora está pior, pois os sais de quinino usados na época eram menos tóxicos do que os sais usados hoje.
O que as pesquisas atuais mostram é que a cloroquina não só não cura nem previne a covid-19, mas que pode matar muita gente. Especialmente, mediante ataques cardíacos.
Apesar disto, alguns políticos continuam pregando o uso destes produtos sabidamente inócuos para tratamento da doença e extremamente perigoso para a saúde cardíaca do paciente. Por quê?
Difícil saber ao certo. Na melhor das hipóteses, é boa-fé amparada em pura ignorância. Na pior das hipóteses, é a venda de ilusões. Fazer de conta que alguma coisa útil está sendo feita, apesar de a pessoa saber que está enganando o público.
Até meses atrás, a possibilidade de alguém, por ignorância, acreditar na cloroquina podia fazer sentido. Depois de mais de 50 países terem feito pesquisas cujos resultados tiram qualquer esperança de efetividade, já não é mais possível acreditar em boa-fé amparada em ignorância.
Cloroquina não só não previne nem cura covid-19, como pode matar o paciente. Estes são os fatos que a ciência nos mostra hoje.
No entanto, boatos não morrem. O uso do quinino para combater vírus foi forte em 1918 e está forte em 2020. É a história que se repete 102 anos depois. Como os boatos, o sonho de encontrar remédios milagrosos não morre. Por isto os charlatões continuaram vendendo esperança de encontrar um chazinho, um comprimidinho, uma capsulazinha que, uma vez tomados, substituirão todas as cautelas que os cientistas recomendam.
Recomendações sensatas em 1918 e 2020
Em 1918 algumas autoridades mais precavidas recomendavam o afastamento social. Pessoas, cidades e países que seguiram esta recomendação foram poupados dos piores aspectos da pandemia conhecida como gripe espanhola. Passado um século e dois anos, a principal recomendação para enfrentar a covid-19 ainda é a mesma: distanciamento social. Quem seguir a recomendação terá maior chance de não pegar a doença. Quem não seguir, terá mais chance de adoecer. Se isto acontecer, tomara que o doente se recupere espontaneamente e não precise correr o risco de ser maltratado com uma dose de hidroxicloroquina.
Melhor correr o risco de 5% de morrer pela covid-19 do que triplicar ou quadruplicar este risco de morrer com ataque cardíaco provocado pela cloroquina.