Seja sutil, vote no Liu
Francisco Campos (Liu) nasceu em 1934 e nos deixou em 2016. Era primo de meu avô Mário Morais, com quem tinha alguma semelhança física. Nos últimos treze anos de sua vida, convivi com ele. O título dessa crônica remete à sua candidatura a vereador, fato que aconteceu em 1985, pelo Partido Democrata Social (PDS). Ele usou esse curioso slogan: “seja sutil, vote no Liu”. Muito curioso que tenha tentado a carreira política, pois era homem caseiro, sem verbo fácil, sorria muito raramente, econômico com as palavras. Não se esforçava para agradar o interlocutor, nem sequer costumava pegar na mão. Para vocês terem uma ideia, muitas vezes, antes de dar opinião sobre algum assunto, dizia, sem sorrir: “a opinião de um bobo”. Não parece muito mais um narrador de romance de Machado de Assis do que um político de nossa época? Homem cheio de sutilezas marotas, mas ao mesmo tempo um católico conservador, Liu era da Santo Antônio do Monte de José de Magalhães Pinto. Tinha, contudo, um lado cosmopolita, tendo morado em São Paulo.
De São Paulo, trouxe um violino e uma câmera Super-8. Até o final da vida foi apaixonado por filmagens em Super-8. Fui junto a ele até a Vila Militar para tentar salvar os rolos de filme que ele tinha, em busca de um antigo projetor, possivelmente o projetor que servia no cineminha da vila militar muitos anos antes, comentado por meu pai em outra crônica nessa coluna… Eu vi algumas dessas imagens em preto e branco, mostrando a construção da Matriz, pessoas patinando, outras tomando sorvete (aparentemente, grandes novidades na época), desfiles de estudantes no primeiro de junho. Ele passou essas filmagens para VHS, na tentativa de salvar os rolos de filme que possuía, mas acabaram perdidas, creio que não foram transmitidas para DVD e acabaram mofando.
Liu contava ter conhecido Sílvio Santos quando ele ainda era um vendedor ambulante. Teria ido, também, às apresentações de Mazzaropi logo quando ele surgiu, antes do cinema. Era grande admirador desses dois e conhecia muito os filmes do cineasta paulista e criador do inesquecível Jeca.
Há quem diga que ele tinha um “it”, como diziam na época. Lembro da história de um papagaio que, contavam os parentes, só falava com ele. Como nada existe de mais oposto à seriedade desse homem do que as molecagens de um papagaio, imagino como se daria esse diálogo.
Francisco me fazia lembrar muito o poema Confidência do Itabirano, de Carlos Drummond de Andrade, onde ele fala que de Itabira lhe veio a “cabeça baixa”. Igualmente, o nosso candidato a vereador, bastante recatado, andava de cabeça baixa na rua, sem cumprimentar ninguém. As pessoas observavam isso e comentavam comigo. A meu ver, era uma estratégia para não ter que conversar com todo mundo em cidade do interior e, daí, seguir adiante, cabeça baixa, indo resolver o que tinha que resolver no centro da cidade. Ele também parecia Carlos Drummond de Andrade em sua aparência física, fato também comentado por outrem. Ele era um mineiro que nascera duas gerações depois, mas tinha muito em comum com o poeta itabirano. Ele também falava baixo, tom suave, com expressivos olhos azuis, mas não costumava olhar de frente. Ambos eram tímidos.
Igualmente emocionante foi o último encontro entre Liu e meu avô Mário Morais, quando meu avô já estava seriamente adoentado. Não consigo lembrar sobre o que ambos conversaram. Os dois não se frequentavam, como disse a mim o meu avô, mas sempre mantiveram uma amizade. Nesse dia, curiosamente, notei o quanto os dois se pareciam, a origem em Santo Antônio do Monte. Liu também conhecia a fazenda Coqueiros, fazenda essa que deu nome a um livro memorialístico (que ele leu) de autoria meu avô, os olhos azuis eram os mesmos, a pele clara, a forma recatada de falar, a educação.
Nos seus últimos dias, depois que ele teve um acidente vascular cerebral, vimos alguns filmes juntos, tais como São Paulo S.A. Ele gostou de ver a São Paulo de sua juventude. Ele admirou bastante o filme Bang Bang, de Andrea Tonacci, que mostrava a Rodoviária, a Afonso Pena e a Praça Sete tal como elas eram no ano de 1971. Isso ativava nele as memórias que tinha dessa cidade, que visitava com frequência para repor os estoques de sua loja, o Bazar Joene, famoso pelos artigos de muito bom gosto, cujas vitrines chiques e reluzentes fascinavam. Liu trazia muita coisa de São Paulo, cidade onde deixou muitos parentes. Ele lembrou-se que a dançarina que aparece no filme improvisava ali no centro de Belo Horizonte. Eles devem ter levado, de improviso, a dançarina para uma apresentação de flamenco no mirante (segundo ele) e daí aquela impressão curiosa que aparece no filme, de uma figura gigantesca dançando sobre a cidade.
Nesse período, fui à Santa Casa vê-lo, pois eu o tinha levado lá sozinho quando ele começou a passar mal. Dias depois, ao visitá-lo, já estava bem. A enfermeira disse: “Você é o Lúcio, você é parente dele”? Eu disse: “sim, sou genro”. Ela: “ele chamou seu nome a noite inteira”. Semanas depois, bem melhor, ele resolveu ir à missa na Matriz, bem cedo, pois sentia-se em falta por não ir à missa. E lá ele sofreu um outro AVC e morreu de uma forma como ele mesmo, com certeza, gostaria de morrer: dentro da igreja.
Sua lembrança de sétimo dia o retratou com um raro sorriso e um movimento de mão que parece um “tchau”. Foi a despedida de quem sempre combateu o bom combate e guardou a fé, um exemplo para nós.
Lúcio Emílio do Espírito Santo Júnior é filósofo, professor e escritor. (Foto do alto: Arquivo do autor)