A Páscoa e outras lembranças

 

Desde criança, bem criancinha, já tenho lembranças da Páscoa. Minhas primeiras lembranças remetem a meu pai e mãe levando a mim e a meu irmão a uma fábrica de chocolates de uma marca muito famosa, local que ficava a 500 metros de minha casa. A fila era enorme, mas compensava, pois comprávamos ovos de Páscoa enormes por preços convidativos.

Durante toda minha infância fizemos este ritual anualmente.

Um pouco mais velho, lá pelos sete anos de idade, fiz a primeira comunhão e aprendi sobre o lado religioso da Páscoa. Nesta época comecei a perceber que havia pontos bem incongruentes entre a visão religiosa, com o sofrimento de Jesus após quarenta dias no deserto, e o coelho e seus ovos de chocolate, sendo que coelhos, até onde eu saiba, não botam ovos, muito menos os de chocolate. Que confusão!

Na adolescência e vida adulta eu perdi um pouco o prazer de comer doces, o que afetou meu consumo de ovos de Páscoa. Fiquei muitos anos sem comprá-los, hábito retomado parcialmente quando nasceu minha filha Isabella, há cerca de dezessete anos. Comprava os mimos para ela, que os devorava praticamente sozinha.

Na verdade, só lembrava da Páscoa quando entrava em algum supermercado paulistano e era obrigado a gatinhar pelo chão, pois havia ovos de Páscoa pendurados nos corredores, e qualquer pessoa com mais de 1,5 metro de altura bateria a cabeça neles.

Nos últimos anos, por conta da pandemia do coronavírus, até esse hábito mudou e, até onde me lembro, os supermercados não penduraram as delícias.

Parafraseando o grande José Simão, colunista histórico da Folha de São Paulo: “meu sobrinho perguntou ao pai: “Jesus era um coelho”?”. Rarara, também parafraseando o Macaco Simão. Que confusão!

A Páscoa como passagem

A Páscoa é uma festa bíblica para comemorar a fuga dos israelitas do Egito, com a abertura do Mar Vermelho por Moises. Conhecida como Pesah, é uma festa que comemora a mudança de vida.

Os cristãos se apoderaram da Pesah e dão nova roupagem a ela. A passagem é a morte e a ressureição do filho de deus enviado à Terra para curar o pecado original dos humanos.

Há muitos livros que brincam com essa passagem. Lembro-me do livro “Pessach” do brasileiro Carlos Heitor Cony, que narra a passagem de um cidadão pacato para a luta armada no Brasil, durante o golpe militar de 1964.

Como sou nada religioso, a Páscoa me remete sempre a mudança de vida, buscar por novas conquistas, esforços para conseguir realizar algo difícil, intransponível. Prefiro essa visão à religiosa e a dos ovos de chocolate.

A Páscoa em nosso planeta

Tenho ouvido muitos cientistas e pessoas que estudam nosso planeta Terra sobre a necessidade de fazermos uma Pesah, saindo da maneira como a usamos hoje, para uma maneira mais indígena, de amor ao solo sagrado no qual vivemos. Em outras palavras, se não cuidarmos da Terra, repondo aquilo que destruímos nela diariamente, nossos descendentes não terão o prazer de viver aqui.

Essa passagem, essa Páscoa é necessária e urgente. Tenho ouvido semanalmente ao professor, escritor e teólogo Leonardo Boff, que hoje é muito mais um cientista da natureza do que um padre católico. Ele afirma que estamos matando a Terra tão rapidamente, que talvez não haja mais tempo de voltarmos a vê-la saudável.

Boff costuma usar uma analogia maravilhosa criada por Carl Sagan, cientista muito conhecido. Nesta brincadeira, Sagan/Boff usam um ano de 365 dias para explicar o surgimento do universo. Nesta comparação, o “bigbang” aconteceu no dia 1 de janeiro às 00:00 horas. A sequência é esta:

01 de janeiro – início do Big Bang / 07 de janeiro – nascimento das primeiras estrelas / 01 de março – surgimento da Via Láctea e outras galáxias / 09 de setembro – origem e formação do Sistema Solar / 14 de setembro – origem da Terra / 25 de setembro – surgimento das primeiras formas de vida terrestre / 02 de outubro – formação das rochas mais antigas já registradas / 30 de novembro – início da reprodução sexuada

Dezembro: 01 – constituição da atmosfera atual / 16 – formação dos primeiros helmintos (vermes) / 17 – Big Bang biológico: formação de uma grande quantidade de seres vivos no Cambriano / 18 – Formação dos primeiros seres vivos vertebrados / 25 – Origem e reino dos dinossauros / 26 – Origem dos primeiros mamíferos / 28 – Formação das primeiras aves / 30 – Extinção dos dinossauros

31 de dezembro: 22:30 (hora) – Os primeiros humanos / 23:46 – Aprendizado sobre a domesticação do fogo / 23:56 – Fim do último período glacial / 23:59 – Data das pinturas pré-históricas na Europa / 23:59:20 – Desenvolvimento da agricultura / 23:59:35 – Início do Neolítico / 23:59:50 – Surgimento das primeiras grandes civilizações / 23:59:58 – Realização das cruzadas na Baixa Idade Média / 23:59:59 – Início do capitalismo comercial e a expansão colonial europeia.

Por esta analogia, a religião teria surgido às 23:59:55 do dia 31 de dezembro e Jesus teria nascido no último dia do ano às 23:59:57.

Neste calendário, destruímos o planeta Terra em alguns segundos, a ponto de estarmos com aquecimento, enchentes, clima fora do eixo etc. Fizemos a Pesah ao contrário. Agora, segundo Boff, precisamos fazer a passagem do lado mau para o bom. E urgentemente. Que venha a Páscoa salvadora.

Uma Páscoa pessoal

Conheci meu sogro há quatro anos e meio. Ouvi muitas histórias sobre suas dificuldades, medos, síndromes e pânicos. Escutei que não lograva ir do centro de Bom Despacho até a Avenida Dr. Roberto Queiroz, na Praça de Esportes. Aos poucos foi vencendo esta dura batalha contra os medos de sua mente. Há alguns meses ousou entrar em um elevador pela primeira vez.

O que parecia impossível para esta vida, aconteceu agora em abril: ousou ir pela primeira vez a um aeroporto, ver um avião de perto, entrar nele e voar. Como um filhote de pássaro que voa pela primeira vez, deve ter enfrentado maus momentos. Também como um pássaro, sabe que vencida a primeira etapa do aprendizado, da passagem, da Pesah pessoal, vai buscar voos mais altos e longos.

Tendo a achar, com o perdão dos religiosos que me dão a honra da leitura, que atravessar o Mar Vermelho liderado por Moises foi fichinha perto do primeiro voo de meu sogro, que passou 78 anos sem ter coragem de chegar perto de um avião, mas não passou seu aniversário de 79 anos sem ter tido esse prazer. Parabéns, seu Tadeu, por sua Páscoa pessoal.

Boa Páscoa a todos os raros leitores!

Alexandre Magalhães

Alexandre Sanches Magalhães é empresário, consultor e professor de marketing, mestre e doutor pela USP e apaixonado por SP e BD

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