Recordações de antigas Semanas Santas

 

Antigamente a Semana Santa era a cerimônia mais importante da Bom Despacho sertaneja e provinciana. A maioria da população vivia nas roças e vinha para a cidade participar das procissões que levavam as imagens de Jesus e de Nossa Senhora para igrejas diferentes e distantes. Uma a cada dia do início da semana. Também das missas. Do lava-pés. A sexta-feira santa constituía-se no dia mais sagrado para todos os fiéis. As imagens dos santos eram cobertas com panos roxos na igreja e até em muitas residências. Sinos e campainhas de sons festivos ficavam mudos em respeito à imolação e à morte de Cristo. Em lugar dos sinos tocavam-se as matracas tristonhas.

No dia da procissão do Senhor Morto ou procissão do enterro, milhares de pessoas, as famílias e até muitos daqueles que quase não frequentavam as igrejas, as missas e os sacramentos, neste dia enchiam os templos. Rezavam e à noite participavam do cortejo por um grande percurso da cidade. Os católicos acompanhavam contritamente o séquito e seguiam a imagem do Senhor Morto, carregada em uma espécie de caixão. As crianças, os adultos e muitos jovens idosos oravam contritos com velas acesas num cortejo luminoso que iluminava as ruas e becos da cidade por onde passava. Saindo da matriz, esse cortejo percorria um longo caminho e voltava ao ponto original. Ali um sacerdote do alto da escadaria do templo esperava pelo retorno da multidão. Geralmente um sacerdote convidado de outras paróquias, que tinha o dom e a fama de grande pregador capaz de emocionar o público com uma comovente homilia sobre os sofrimentos de Jesus na cruz até a morte para salvar toda a humanidade. Depois de muitas orações e da pregação do padre, as pessoas contritas e satisfeitas com a participação daquele dia sacrossanto retornavam para suas casas. Iam dormir, que dia seguinte começavam os festejos do sábado da aleluia em comemoração da ressurreição de Cristo.

À noite havia até o esperado Baile da Aleluia, no Clube Bom Despacho, fechado para festas durante toda a quaresma. Então, voltava-se a beber, a dançar com muita animação, parece que para tirar o atraso de tanto tempo de pagodes proibidos no período de 40 dias, sagrado para os católicos, que eram maioria expressiva em nossa comunidade.

O canto das Verônicas

Na Procissão do Enterro, à margem dos fiéis que passavam, soava triste e dolorosa a cantiga das Verônicas: “Ó vós todos que passais vede se há dor maior que minha dor…” E exibiam a efígie de Jesus, sangrando com a coroa de espinhos.

Para esta interpretação escolhiam-se as vozes mais bonitas da cidade, que de tempos em tempos variavam. Vozes lindas como as da Viena filha do Paraíso, funcionário da Prefeitura; da Nair do Anacleto, funcionário da Força e Luz, e da Lindalva da Casa Assumpção, que com seu canto suave e dolorido criavam uma aura especial e santa que fazia aumentar o fervor do povo.

Adão e Eva

Adão e Eva eram representados por um casal, vestidos com roupas simples, compridas e antigas que corriam incessante e incansavelmente pra lá e pra cá, do início ao fim do cortejo. Adão, com uma enxada, batendo no chão, como quem cava a terra para o plantio. Eva levava as mãos em seu avental, fingindo pegar sementes e jogar nas covas “abertas” por Adão. Seus gestos lembravam às pessoas a sentença imposta a nossos pais e à humanidade inteira, no jardim do Éden, pelo pecado de desobediência que cometeram ao comerem do fruto proibido: “Comerás o pão com o suor do seu rosto”

A figura do demônio

Um cidadão, vestido de capeta, com chifres, rabo e tudo, amedrontava a meninada que corria para o os braços e aconchego das mães. Era uma figura assustadora que corria para cima e para baixo soprando uma buzina das que chamavam os cachorros para as caçadas de antigamente.
Naquela noite a gente dormia e sonhava compadecido com o sofrimento de Jesus, com Adão e Eva, e tinha pesadelos com o chifrudo.

As comitivas rurais

Nos tempos idos – anos de 1800 e no século XX, até a década de 60 – a maioria esmagadora da população vivia nas roças, nas fazendas. Mas, na semana santa, viam-se comitivas de pessoas e famílias, que enchiam a cidade pelos caminhos para o povoado ou para a cidade. Alguns, a pé. Outros, a cavalo. Outros mais em carros de bois. Pousavam em casa de parentes ou alugavam cômodos para ficar, se estavam dispostos a participar de toda a efeméride.

Ricos fazendeiros compravam casas no arraial ou na cidade, que ficavam fechadas, devidamente mobiliadas com o fim único de vir para rezar no fim da quaresma e na páscoa com a família e também muitos empregados.

O meu bisavô materno, Zezé Rufino, desde os anos de 1900 até o final dos anos de 1930 possuíra um belo casarão, onde hoje se encontra o Hotel Letícia. Ele vinha lá do Picão, da Extrema ou do Raposo, fazendas de sua propriedade, que no final de sua vida já estavam nas mãos de seus três filhos: Maria do Alfredo (no Raposo), a Extrema com o Berto Rufino e Picão com Juca Rufino. Muita gente dessa comitiva rural e religiosa vinha a pé, a cavalo ou em carros-de-bois.

Um ou dois desses carros-de-bois transportavam os colchões de palha. As roupas de cama e de vestir. Bolas de sabão preto para lavagem dos talheres e panelas e de roupas. Também víveres para as refeições: arroz, feijão, carne, toucinho, fubá, ovos, polvilho, farinhas e outros.

Abaixo do casarão do Zé Rufino, minha mãe, que é sua neta, e participava com sua família da jornada, lembrava uma figura histórica dos tempos do arraial e da vila do Bom Despacho. Era a Sofia, mulher morena, forte. A mais afamada quitandeira e cozinheira do lugar. Sofia era casada com o italiano Mário Celeiro, parente do Vigário Nicolau. Mãe da Ruth do Eurico Chaves. Dona Sofia era contratada pela família para fazer belos almoços, jantares, deliciosas quitandas para dezenas de inquilinos, na semana santa, no casarão.

Desde a mais tenra infância, desde quando dei consciência de mim, me lembro de ter participado das procissões e cerimônias litúrgicas da semana santa, com meus pais e irmãos.

E agora guardo essas estórias e recordações que marcaram e marcarão pra sempre a minha vida.

Tadeu Araújo

Tadeu Araújo Teixeira é professor, escritor, colunista e membro da ABDL

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