Goiabas, vacinas e cão que escolhe sua dona

Há algum tempo escrevi sobre esse tema neste espaço: o prazer de colher e comer frutas no pé. Para mim, isto é muito estranho, pois em minha cidade natal quase não há pés de frutas em áreas públicas e quando elas existem, é muito raro que alguém pare para apanhá-las. O paulistano é meio envergonhado para estas cenas simples, como apanhar uma fruta no pé, parar na porta de casa para alguns minutos de conversa com um conhecido (quase todos moram em prédios, o que já dificulta muito este hábito tão comum em Bom Despacho) ou oferecer carona para algum idoso ou gestante que estejam aguardando o ônibus para ir do bairro ao centro da cidade.

Há algumas semanas percebi que as goiabeiras estavam carregadas de frutas. Na verdade, vi muitas frutas maduras e espatifadas no chão sob as árvores, já que costumo andar de cabeça baixa, sem olhar para as pessoas, nem para as coisas da cidade, como as árvores, pois em São Paulo é considerado agressivo olhar para pessoas que passam ao nosso lado, seja a pé ou dirigindo seus carros.

Como todo ano acontece, muitos bom-despachenses adaptam seus caminhos diários para passar pelas ruas nas quais há as goiabeiras, poder apanhá-las e se deliciar com as frutas. Claro, minha companheira bom-despachense também passa a viver no modo ‘prioridade máxima para as goiabas”. Muda seus caminhos, para o carro sem aviso prévio para colher as frutas, sobe em muros, mostra habilidades incríveis para escalas os troncos das goiabeiras, consegue enxergar frutos maduros no meio das folhagens espessas, observa goiabas no chão enquanto anda, tentando identificar algumas que ainda estão boas para seu consumo, usa a blusa como pano para dar uma limpadinha nas goiabas e as devora com vontade.

Nesta semana, senti que voltou um pouco triste de uma caminhada. Antes que eu pudesse comentar qualquer coisa ou fazer uma pergunta sobre o motivo de sua tristeza, ela mencionou que saiu de casa planejando atacar uma goiabeira que fica no quintal de uma casa aqui no bairro Esplanada, em uma praça. Mas, ao chegar ao local, viu um grupo de alunos, em seu primeiro dia de aula, “assaltando” a goiabeira e divertindo-se. Diante da cena, amaldiçoou as escolas, a volta às aulas e a perda de sua regalia no consumo das deliciosas goiabas. Passado alguns minutos, ficou conformada e até um pouco feliz de saber que os muito jovens também adoram a temporada de caça às goiabas, hábito que ela aprendeu com seu pai, que até hoje, quase um octogenário, é visto em Bom Despacho trepado em goiabeiras diversas, divertindo-se com as frutas.

Uma cena inacreditável

Há um ou dois anos, participei de um replantio de árvores em uma área devastada na Matinha do Batalhão. Foram alguns dias, nos quais os voluntários ajudavam a carregar equipamento, furar buracos, levar mudas de árvores, plantá-las, colocar terra e produtos específicos para que as árvores tivessem mais chance de sobreviver. Tudo, sob a supervisão de meu amigo Saul, com formação específica na área e apaixonado pela natureza em geral e pela Matinha do Batalhão, especificamente.

Durante o replantio, minha companheira bom-despachense apresentou-me aos voluntários e contou-me histórias de alguns deles. Nos dias que participei, havia alguns militares reformados entre os voluntários.

Na semana passada, uma pessoa de meu convívio diário foi ao local de vacinação contra a covid-19 para tomar sua dose de reforço. Foi vacinada com sucesso e trouxe do posto de vacinação uma história incrível: um dos militares reformados que conheci no replantio de árvores da Matinha do Batalhão estava de “plantão” no local fazendo discursos intermináveis contra a vacina, pedindo para as pessoas que estavam na fila não se vacinarem, pois o medicamento não funcionava, que mesmo vacinadas as pessoas continuavam contraindo a covid-19 etc. Mesmo diante dos argumentos de algumas pessoas de que a vacina é parecida com um bom goleiro de futebol, que evita muitos gols adversários, mas não impede todos, ou seja, protege muito, continuou sua ridícula pregação por muito tempo.

Esta história, muito triste, apareceu em diversos contextos. Em outra ocasião, uma pessoa que frequenta um grupo norte-americano de voluntários para ajuda humanitária em Bom Despacho, contou a mim que este mesmo militar reformado fez um longo discurso contra a vacina durante uma das reuniões regulares deste grupo. Segundo o relato, parte das pessoas que estavam na reunião estavam incrédulos com a infantilidade dos argumentos anti-ciência diante do aumento de mortes com a chegada da variante ômicron da doença.

Triste! Muito triste.

Eu te escolho

Nas últimas décadas, muitos paulistanos adotam cães cada vez menores para serem criados em apartamentos também cada vez menores. Os cachorrinhos são criados como bibelôs, ou para companhia dos poucos filhos ou para substituírem os próprios, já que muitos paulistanos abandonaram a ideia da reprodução.

Quando corro perto de minha casa aos sábados ou domingos, sempre vejo uma fila enorme na porta de um pet shop, com dezenas de pessoas esperando sua vez de escolher sua mascote gratuitamente. Notei que, sempre, os últimos a serem escolhidos pelas famílias são os animais maiores. Os pequeninos são os primeiros a encontrar um lar.

Talvez, por causa desses numerosos programas de adoção, em São Paulo há muito menos cachorros nas ruas, quando comparo minha cidade natal a Bom Despacho. Por isso, sinto-me tão triste em ver tantos animais vivendo na rua desta cidade que aprendi a gostar.

Ao contrário do que normalmente acontece em São Paulo, ou seja, um humano escolhe um animal, há algumas semanas acompanho a linda história de uma cachorra que escolheu sua dona. Isso aconteceu em Bom Despacho. Por causa das chuvas torrenciais na cidade, uma cachorra que mora nas ruas do bairro Esplanada pediu com seus olhos tristes que minha companheira a deixasse proteger-se das águas sob o telhado da varanda. Com um dó enorme, a permissão foi dada apenas abrindo o portão. O animalzinho entrou desconfiado, com orelhas baixas, medo visível. Pela manhã, voltou para a rua bem cedo, quando abrimos o portão para comprar pão.

Nos dias seguintes, a cena repetiu-se. Aos poucos, mesmo sem chuvas, a cadelinha foi tomando conta do banco de madeira que fica na varanda. Agora, com ou sem chuvas, ela está sempre por perto. Pede com seu olhar meigo que abramos o portão, tanto para entrar como para sair. Com ração e água disponível perto do banco de madeira, ela continua saindo para vasculhar o lixo da vizinhança. Força do hábito.

Nos últimos dias, passou a latir para quem passa na calçada, sentindo-se dona do pedaço. Mesmo com o portão aberto, não ataca a ninguém, apenas avisa que agora há um cachorro na área. Hoje pela manhã, minha companheira comentou que quer levá-la a um veterinário, pois está preocupada com a saúde da visitante.

Quero ver mandar a mascote embora quando a temporada de chuvas acabar…

PS: depois que enviei o texto ao Jornal de Negócios, minha companheira chamou a área de zoonose da prefeitura de Bom Despacho, para que a testassem, já que desconfiávamos que a cachorrinha poderia estar com leishmaniose. No mesmo dia, duas pessoas da zoonose vieram e levaram o animal para testes. Por isso, não consegui fazer fotos do cãozinho para publicar junto a este artigo.

PS1: hoje pela manhã, a área de zoonose nos ligou para dizer que a cachorrinha não estava mais lá, pois havia escapado de sua gaiola. Não tenho palavras para manifestar minha indignação. E se fosse meu cachorro e não um cachorro da rua? Como pode haver tanta irresponsabilidade em um serviço público? Há algumas semanas acompanhamos pela imprensa o caso de uma cachorra que havia sido perdida em um avião. O dono do animal exigiu hotel, alimentação e despesas pagas pela companhia aérea. Depois de um mês, a cachorra reapareceu e virou estrela nos telejornais brasileiros. E neste caso? Quem é o responsável por perder uma cachorra que havíamos adotado da rua? Precisaremos entrar com um processo contra a prefeitura para apurar as responsabilidades? E se fosse uma criança em uma creche? E se fosse um idoso em um abrigo público? Por ser uma cachorra, a prefeitura tratará o caso como irrelevante? Não tenho palavras para manifestar minha indignação pela irresponsabilidade da prefeitura por meio de seus representantes da zoonose. Irresponsáveis… ainda espero que achem a cachorra e a devolvam sã e salva, como a entregamos a prefeitura bom-despachense

 

Alexandre Magalhães

Alexandre Sanches Magalhães é empresário, consultor e professor de marketing, mestre e doutor pela USP e apaixonado por SP e BD

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