Sara Mariana: pra não esquecer este talento
LÚCIO EMÍLIO JÚNIOR – Sara Mariana, dezessete anos, é uma jovem mulher com atitude, estudante do Colégio Tiradentes. Sua mãe é a dona da Adriana Variedades, seu pai é o Alexandre que é PM e também músico, toca na banda de música dessa instituição militar. Ela já participou na crônica publicada aqui no Jornal de Negócios anteriormente: “Vida Eterna à Música”.
Interessada em música, já tocou bateria com a banda Devise. Em abril de 2023, vi a despedida da banda numa casa de shows em BH com a emocionante participação de Sara na bateria.
A banda Devise lançou três discos (pronuncia-se “devisi” mesmo) e parou devido a mudança de Luís Couto para a Suécia. Anos atrás, por volta de 2015, o João Paulo do Ernane Xavier, do bar do Xavier, comentou comigo que um amigo dele, o Luís Couto, tinha uma banda e ele tinha ouvido a banda do meu irmão, Dead Lover´s Twisted Heart´s, em um vinil na casa do Luís. Eu estranhei, mas depois soube por meu irmão que os vinis tinham voltado e o disco da banda tinha saído em vinil também.
Sobre Devise e Luís Couto, devo dizer que tanto esse guitarrista, vocalista e tecladista, bem como essa banda mereceriam mais reconhecimento por parte de nós bom-despachenses. A Devise foi destaque na cena independente de rock brasileiro em 2022. Quando do lançamento de seu primeiro disco solo em Estocolmo, Rosário, Luís afirmou em seu facebook que “esse trabalho significa um recomeço. E para começar de novo, aqui da Suécia, eu precisei entender melhor quem eu sou, de onde eu vim, o lugar que eu posso e devo ocupar nesse mundo como artista sul-americano, brasileiro, criado no interior de Minas, em Bom Despacho, no bairro do Rosário.”
O disco de Luís, que foi repercutido no jornal Estado de Minas (coluna Hit, de Helvécio Carlos, matéria intitulada Reencontro com as Raízes em Estocolmo), tem uma imagem da fábrica de tecidos e do bairro do Rosário bem em destaque na capa. Algumas das canções do primeiro disco de Luís podem ser escutadas AQUI.
Sara, além do talento musical, também merece aqui publicação de uma de suas crônicas. Gostaria de partilhá-la abaixo com vocês:
Para não me esquecer
O que é desconhecido não é esquecido. Me questiono se o esquecimento e o acaso fazem parte de uma condição inerente e essencial da experiência humana. A fraqueza se constitui pela eternidade e inevitabilidade da mudança e abstração, da ausência e deslembrança. Penso que vou me recordar dos fatos, dos lugares, das pessoas e dos anseios. Mas esqueço. A mera lembrança vaga me assombra. Me intimida o incentivo da acumulação de valores, e me amedronta o vazio do esquecimento, provocado pela difusão de infinitas informações na modernidade. Esqueço por necessidade, por não haver indícios que a desumanização seja vantajosa, e que a programação metódica humana seja benéfica. O esquecimento é uma válvula de escape, um mecanismo de defesa criado pela nossa individualidade, que visa a compreensão da vida em meio ao caos e a complexidade da contemporaneidade. A cada momento, me esqueço do que fui e o que serei agora, meu novo ser se renova de maneira incessante, e é curioso como sabemos demasiadamente pouco sobre nós mesmos. Há expressividade nas incertezas dos espaços vagos perante à exatidão que segue sendo ilusória. Não é fácil definir-se porque não é lógico. Não somos seres imutáveis e a vida não é exata, o instante presente da minha definição vive em confluência com a fluidez da minha espécie. É uma incógnita para mim a compreensão da mortificação do eu, e se a desumanização ocorre baseada nos princípios do esquecimento, das páginas em branco e dos rascunhos vazios. Me pergunto se deixo de ser humano quando esqueço. A pluralidade multifacetada me intimida, se materializamos e definimos de forma precisa nossa alma, é como se houvesse um extermínio de todas as outras possibilidades que haviam. É possível perceber parâmetros semelhantes com todos os cenários possíveis à nossa volta, que rodeiam jovens e projetos idealizadores, mas que se perdem na memória. São retratos perdidos de uma vida apagada, invisíveis e impossibilitados. Ser poeta no auge da adolescência é “fácil”. O difícil de fato, é permanecer acreditando na poesia ao decorrer da vida, com o surgimento de desafios maiores. Através da imposição do sistema, nós esquecemos da nossa essência.
Entre o momento do acontecimento, do presente e desalento, há riqueza no momento atual, nos desenhos em que a vida realiza, os quais alguns desbotam, se transfiguram, se transformam, ou ficam iguais. Existe a probabilidade dos rascunhos se perderem nas recordações humanas, mas que em tanto, são essenciais. Memórias se encontram e constituem a formulação da história pessoal do indivíduo em composição, em sua matéria primitiva, orgânica e cultural. Sentimentalismos expressam a verificabilidade da sensibilidade humana, composta por aspectos da subjetividade e objetividade. Os sentidos e as memórias, colecionadas ao decorrer de cada trajetória, são indícios corporais que em meio a intangibilidade, exprimem parâmetros da racionalidade, faces e espelhos do eu pessoal em formação. Isso, porque, exalam a força de uma conexão, dos traços que a vida constrói, e da sua arte do encontro, embora haja tamanho desencontro em seu desenvolvimento. Perdemos amor pela escassez de sincronia e coincidência, porque é necessário o acaso para que o amor se instale, modificando uma estrutura completa e alterando inclusive, o modo como a recordação de determinada lembrança irá se instalar em vagas memórias sutis, delicadas e imprescindíveis. Os elementos sensoriais evidenciam cada experiência humana e o seu desejo de não se esquecer de algo, de alguém ou de algum momento. Nós esquecemos das frases que geram efeito, mas nos recordamos do vivenciado, e é para coisas assim que nascemos, para o que é verdade e exala a força de existir, que possui o poder da mudança, que entra em você e te faz sair diferente. Nós esquecemos da expressão de impacto, mas não dos livros e discos que humanizam cada indivíduo. Um dia feliz possui em sua essência maior potencialidade do que a tristeza de uma vida toda, é como a música que aflora o inalcançável de uma lembrança sensível, ocultada pelos elementos programados. Impressões me assolam e crio estimativas, penso que nunca vou me esquecer de algumas pessoas em específico, de palavras e expressões significativas, das obras artísticas que consumo. Sinto que cada partícula relevante não vai fugir da minha memória e da minha consciência prematura do vasto horizonte que me aguarda, repleto por lucidez.
A brevidade do que é vago sustenta uma vida toda de incertezas, e no brilho eterno de uma mente repleta por lembranças, há sempre a existência de uma nova via, marcada por outra realidade. Gostaria de compreender a dúvida e o surgimento da ambiguidade. Com intensa frequência escrevo algo e a imprecisão me assola, não sei se estou escrevendo algo de forma correta, mesmo sendo totalmente banal. Eu tenho medo de perder a memória e virar algo indizível, incomunicável, inexprimível. Me tornar algo obtuso e sinalizado por delimitações, um ser humano que está sempre presente, mas ao mesmo tempo, questionando todas as suas ações e pensamentos, com a necessidade do concreto. Eu tenho muito medo. Medo de lidar com perdas lastimáveis, com as angústias provocadas pelo excesso de informações, além das multiplicidades relativas, da polarização política e social de forma descomunal. Desinformações desenfreadas, egoísmo eminente, fascismos disfarçados de soluções inexistentes. Sonhos interrompidos, insuficiências intelectuais, o circo dos palhaços imorais, precipícios, abismos desconhecidos e a impossibilidade de parar. É como ser engolido por um mar de ruínas sem vírgula ou pausa para respirar. Nós ainda somos crianças mas agora escondemos o rosto para chorar; a vida passa mas você tem que ficar. Ser adulto é não possuir a possibilidade de parar e não ser só mais um na fila do pão, procurando a solução sem haver a real definição do problema em questão; ser diferente se torna insignificante em um mundo repleto de falsas convicções onde procuramos uma mínima direção. Talvez o esquecimento seja uma dádiva na atualidade, mas se eu fosse eu, não me esqueceria das palavras. Não iria me esquecer de como se pronunciar determinado vocábulo, de como distinguir o inevitável, de como ser feliz. Quando inspirações me fogem à mente, sinto uma parte de mim se apagando. E me esqueço. (iBOM / Foto do alto: Renata Bridges Photo).

