Cosme e Damião: a festa das crianças

 

VITÓRIA AUGUSTA – Setembro é mês de festa. Ele traz um ar de brincadeira e fé. As ruas, casas e terreiros de Umbanda se enchem de cores, cantigas e saquinhos de balas para celebrar Cosme e Damião, a dupla de santos que virou símbolo de pureza e renovação no Brasil. Conhecida como a festa dos Erês, essa comemoração é leve, divertida e cheia de lições espirituais. É o momento em que a energia da infância toma conta, misturando catolicismo, tradições africanas e a sabedoria simples dos espíritos.

Quem foram Cosme e Damião?

A história que aprendi é que eles eram irmãos gêmeos, médicos de profissão, que viveram lá na Síria, no século III. Não cobravam nada pelas consultas, por isso ganharam o apelido de “anárgiros”, que significa “sem prata”. Gente generosa, cuidando de pobres e doentes sem pedir nada em troca. Só que viviam num tempo de perseguição religiosa. E aí não teve jeito: por professarem o cristianismo, foram acusados e acabaram mortos, martirizados. O povo nunca esqueceu. Transformaram-se em santos da saúde, da cura e da proteção das crianças. Séculos depois, a devoção deles cruzou os oceanos e chegou ao Brasil com os portugueses. Mas aqui, como tudo que encontra chão novo, ganhou outra cara, um “jeitinho” bem brasileiro: misturou-se às raízes africanas trazidas pelos escravizados.

Santos católicos, orixás gêmeos

Nas senzalas, os africanos não podiam cultuar seus orixás abertamente. Então, tiveram que esconder seus deuses atrás das imagens católicas. Foi aí que Cosme e Damião se juntaram aos Ibejis, os orixás gêmeos da tradição iorubá. Os Ibejis são a energia da infância: representam leveza, fartura e renovação da vida. São aquele riso de criança que enche a casa, do brincar que também cura. No sincretismo, santos e orixás não se anularam, se somaram. E criaram algo único: a certeza de que a pureza infantil é remédio espiritual. Não foi um encontro fácil nasceu em meio à dor da escravidão. Mas virou resistência, virou cultura, virou fé.

Os Erês

É aí que entra uma das coisas mais bonitas da Umbanda: os Erês. No dia da festa, quando os médiuns recebem essas entidades, o terreiro muda de tom. Eles chegam leves, risonhos, correndo de um lado para o outro. Pedem bala, refrigerante, querem brincar de roda. Eu confesso que fico encantada: atrás daquele jeitinho travesso, vem um conselho certeiro. É como se a sabedoria antiga se disfarçasse de criança para falar direto com a gente. Já ouvi Erê dizer, entregando uma balinha: “Não chora não, tia, vai melhorar”. Parece simples, mas quem recebe entende o peso daquilo. É cura em forma de doce.

O mistério do terceiro irmãozinho

Se você olhar as imagens de Cosme e Damião, vai notar algo curioso: às vezes, aparecem três crianças em vez de duas. Esse terceiro é Doum, o “irmãozinho mais novo” cultuado em muitos terreiros de Umbanda e Candomblé. Para alguns, ele representa a totalidade da falange das crianças, simbolizando abundância, união e a multiplicidade da infância. Não é só um complemento; Doum mostra que essa energia infantil é coletiva, infinita, que se espalha como uma brincadeira em grupo. É como se dissesse: a pureza não anda sozinha.

A festa no terreiro

Se você nunca foi a uma gira de Cosme e Damião, vou tentar descrever: parece um parque de diversões misturado com oração. O batuque do tambor começa animado, os médiuns mudam o jeito de falar, e o terreiro inteiro vira gargalhada. No meio da correria, os Erês dão passes, limpam energias pesadas, entregam recados rápidos. E, claro, pedem doce. A mesa é um espetáculo à parte: saquinhos de balas, pirulitos, chocolates e brinquedinhos coloridos. Todo mundo ganha, criança e adulto. Porque, no fundo, todos carregamos uma criança dentro de nós.

Na Bahia, rola o famoso caruru de Cosme e Damião: um banquete com vatapá, acarajé, quiabo, feijão-fradinho, pipoca e cocada, servido primeiro para sete crianças. É oferenda, oração e partilha em um prato só.

Caridade: dividir é abençoar

Não pense que a festa se resume a doce e brincadeira. Muitos terreiros aproveitam o dia para arrecadar brinquedos, roupas e alimentos para crianças carentes. É a fé transformada em ação concreta. Umbanda mostrando que dividir um pirulito ou um prato de comida é tão sagrado quanto cantar um ponto.

Um convite à leveza

No fim do dia, sempre penso: Cosme e Damião, Ibejis, Erês ou Doum todos trazem a mesma lição. A infância é força de cura. O riso é oração. A pureza é esperança.

A festa dos santos médicos virou, no Brasil, a festa das crianças. E todo setembro, quando as flores dos ipês explodem em cor, os terreiros lembram que fé também pode ser doce, leve e generosa. E eu deixo aqui meu convite: na próxima vez que encontrar um saquinho de Cosme e Damião, aceite. Experimente o doce, guarde o recado. Quem sabe não seja um Erê usando bala de caramelo para te dizer que a vida pode ser mais leve? Porque, no fundo, é isso: a pureza transforma o mundo. Um sorriso de cada vez. (Portal iBOM / Vitória Augusta é acadêmica de Jornalismo e neta do bom-despachense Bené Peão)

 

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