O Estado no Estado: uma reflexão de Benício Cabral
LÚCIO EMÍLIO JÚNIOR – O livro O Estado no Estado (editora Nova Consciência, 2021), de autoria de Benício Cabral, apresenta uma tese fascinante e muito atual. Ele explica que a aparente preguiça dos funcionários públicos pode ser explicada pela presença de um “estado no estado”. O estado brasileiro encontra-se capturado pela plutocracia, ou seja, pelos ricos e poderosos, mas que são grandes empresários, multinacionais e fazendeiros, não são “marajás”, não funcionários públicos.
Benício desenvolveu essa sua tese a partir de sua vivência no serviço público durante muitos anos. Ele também sugeriu a leitura de livros como Donos do Poder, de Raymundo Faoro, livro cuja leitura ele recomenda. E, acrescento eu, O País dos Privilégios, de Bruno Carazza.
De fato, o livro de Faoro tem tudo a ver com o tema, embora Faoro deixe a entender que existe uma casta dentro do estado que o captura, os altos funcionários que de fato conseguem acesso ao poder e drenam recursos em seu interesse. Fica, no entanto, invisível a plutocracia, ou seja, os interesses das empresas privadas em sugar o estado.
O livro de Bruno Carazza, que é nosso conterrâneo, retoma Faoro e analisa quais são os setores privilegiados dentro do estado, como os juízes e os militares, esses sim, os “marajás”. Não podemos confundi-los com enfermeiras, professores ou garis.
Igualmente, em uma viagem pela Itália, Benício comprou os livros do filósofo Gramsci e verificou que esse pensador chegou a essa mesma conclusão: há um “estado no estado”. Originalmente, Benício inspirou esse título no livro Revolução na Revolução?, do filósofo francês Regis Debray. Esse livro de Debray não trata, no entanto, de críticas a Che Guevara, como afirmou Benício. Esse seria o Crítica das Armas, datado de 1973, de autoria do mesmo Debray. A “revolução na revolução” seria a controversa sistematização teórica de como os cubanos fizeram a revolução. Debray criou, então, a teoria do foco, um grupo militarizado, motivado e bem treinado de revolucionários poderia enfrentar e vencer um exército moderno apoiado pelos Estados Unidos; tese à qual a história não deu razão.
Sendo assim, existem os funcionários de alto escalão que beneficiam empresas e pessoas. Na prática, o que existem são regras não-escritas que beneficiam os poderosos. Há toda uma retórica para justificar o tratamento diversificado para essas pessoas e empresas, para as quais as leis tornam-se mais flexíveis. Siga @jornaldenegocios no Instagram e veja mais conteúdos.
Para garantir essa lógica, existe o que Benício chama “doutrinação ideológica”. Não se trata da mitológica doutrinação que existiria nas escolas, mas do processo através do qual os funcionários como um todo passam a entender que, quando lidam com as elites, as leis deverão ser relativizadas. Isso é uma das razões do desânimo: essa não aplicação das leis resulta em não aplicação de uma lei a uma grande empresa ou, ainda, a dura punição para o funcionário de fronteira que foi rigoroso contra o crime e a contravenção (Benício, que também trabalhou em fronteira, comenta até a perda da vida do funcionário, assassinado por bandidos).
Através dessa doutrinação ideológica, desde sua entrada no estado, os novatos aprendem, por uma lógica de prêmio e punição (que ele chama de doce e cascudo) que as regras não são necessariamente para serem aplicadas a todos. Os órgãos que deveriam corrigir essas distorções são coniventes. O resultado é que, quando o funcionário público segue as leis e enfrenta o estado no estado, ele é atacado sistematicamente. Até seus subordinados falam mal dele e nada acontece.
O objetivo de Benício nesse livro foi bem claro: combater o estado no estado. Ele sugeriu, ao final do livro, oito medidas para combater a corrupção: 1) fim da nomeação de funcionários públicos pelo critério de confiança. 2) Criação de uma Corregedoria-Geral federal ocupada por servidores concursados, de carreira. 3) o parlamentar que aceitar função pública no Poder Executivo automaticamente perde o seu mandato eletivo; 4) abolição do foro privilegiado; 5) vedação absoluta das contratações de servidores, sem concurso, no serviço público, como consta na Constituição de República e não é cumprido pelos governantes. 7) que os governantes não nomeiem pessoas de passado sujo. 8) transformar a abominável “carteirada” em crime (corrupção passiva).
Finalmente: no momento em que tramita uma suposta reforma administrativa, o livro de Benício Cabral passou a ser essencial. Oxalá suas medidas e reflexões sejam adotadas quando da tal reforma administrativa! (iBOM / Lúcio Emílio Jùnior é professor e escritor / Fotos: Arquivo Benício Cabral).

