Os que vêm com a maré ou sobre os que vão na onda
VANDER ANDRÉ ARAÚJO – Quando saí de casa em Bom Despacho, aos 19 anos, minha mãe já sabia que a promessa de volto logo não se cumpriria tão cedo. “Vai, filho, vai ser gauche na vida, ser feliz apesar de tudo. Mas trata de ser um homem direito, honesto e trabalhador”. Essas devem ter sido as suas palavras para mim, numa espécie de vaticínio, logo após o choque que ela tomou na fila do Banco do Brasil, quando, ao sacar dinheiro no caixa físico para a compra do mês, naquele tempo em que ainda não tinham chegado as assustadoras máquinas de autoatendimento, ela tomou conhecimento da minha partida.
A agência bancária em que eu trabalhava, aquela ali na Praça da Matriz, 108, passava por mais um dos tantos processos de reorganização provocados pelo fantasma das inovações tecnológicas. E eu, o mais jovem, fui eleito por unanimidade como o “excedente”: o escolhido para mudar de “dependência”. A justificativa era quase cristã: alguém precisava ir, e, por ser solteiro, sem família constituída, eu teria menos dificuldade de adaptação em uma nova cidade. Assim, deixei de ser gente para virar matrícula transferida na empresa, deslocado para uma função não tão distante, mas suficientemente longe: pouco mais de 45 km separam Bom Despacho daquela que chamam de princesa do Centro-Oeste, a divina polis, no início da última década do século XX.
Síndrome do ninho vazio, assim deliberaram os mais próximos, ao perceberem a tristeza dos meus pais afastados do seu filho ainda ingênuo e primogênito dentre os homens. Minha mãe repetia: “Meu menino ainda é frágil, não deve partir. Parece doente aos olhos de alguns doutores mais atentos. Ainda é carente de cuidado, mesmo tantos anos depois do corte do cordão umbilical. Vai se afastar de mim por mais uma daquelas ondas que chegam impiedosas nas marés altas. Mais um dia, mais um dia… menos um dia que não verei mais meu filho em casa.”
E assim tomei rumo na vida pessoal e profissional, encarregado da minha própria carreira, cresci, “empreendi”, como recomendavam os conselheiros de ocasião. Vi o “mar” de gente que também chegava nessas novas cidades por onde passei ao longo da minha vida, com o mesmo olhar assustado que Clarice Lispector descreve em Águas do mar: “Aí está ele, o mar, a mais ininteligível das existências não humanas. E aqui está a mulher, de pé na praia, o mais ininteligível dos seres vivos. Como o ser humano fez um dia uma pergunta sobre si mesmo, tornou-se o mais ininteligível dos seres vivos. Ela e o mar. Só poderia haver um encontro de seus mistérios se um se entregasse ao outro: a entrega de dois mundos incognoscíveis feita com a confiança com que se entregariam duas compreensões”. Acompanhe outros conteúdos acessando @jornaldenegocios.
Na polpa ou no convés, remei bravamente. Cruzei oceanos de possibilidades e muitas vezes restei extenuado na praia, lavado, derrotado por que não dizer… Direcionei meu olhar de siri, andei para trás. Como o caranguejo que se debate com a areia da praia ainda quente e úmida, estendi mãos, fui polvo, lula, peixe grande e, em outras vezes, naufraguei. Escutei conselhos nas conchas, embora não chegasse a encontrar nelas as almejadas pérolas. Ondas e ondas levadas, lavadas por um vulcão de desejos interiores naquela “adultescência” precoce. Fugi várias vezes e até de mim mesmo, quem nunca?
A famosa xilogravura do japonês Hokusai, A Grande Onda de Kanagawa, parecia traduzir a onda que me levou de Bom Despacho naquela noite de plenilúnio: barcos frágeis diante da força do mar, o contraste com a serenidade do Monte Fuji ao fundo.
Minha mãe ficava, em cada domingo, aguardando a próxima “balsa”, que vinha sobre rodas, num daqueles ônibus da Oeste de Minas, a viação local. Preparava almoços, arrumava a casa, ajeitava matula para eu levar para Divinópolis. Fazia de tudo para transformar minhas visitas em festas, como se fossem aparições das suas santas de devoção, bem dispostas nos seus oratórios e cristaleiras.
Diziam os outros: “Podem ficar contentes, agora ele foi promovido, vai para mais longe. Jacaré que dorme a onda leva, cavalo só passa arreado uma vez. Ele tem que agarrar essa oportunidade”.
Depois de 35 anos de Banco do Brasil, encerrei minha jornada como bancário. Tive a oportunidade de gerenciar inclusive o Centro Cultural em Belo Horizonte, experiência que abriu horizontes artísticos para mim e alimentou o meu desejo de publicar o que escrevia. Aposentei-me na mesma empresa onde iniciei como menor aprendiz em 1985.
Mas, ao longo do caminho, fui me distanciando da terra natal, na espera de que alguma onda maior me trouxesse de volta, carregando apenas uma mala simples e dentro dela toda a minha história: o aprendizado longe dos meus pais, irmãos, sobrinhos… o retrato da solidão em vários momentos; o arrependimento de não ter convivido com os meus pais no vigor da sua juventude; as asas de uma liberdade conquistada aos poucos, tantas vezes podada pelas normas e padrões de uma organização que se modernizava e, ao mesmo tempo, me envelhecia.
Hoje, 34 anos depois do primeiro “voo” saindo de Bom Despacho em uma inesquecível viagem de ônibus partindo da Rodoviária, estou a quase dez mil quilômetros de casa, em Hamburgo, na Alemanha. E, numa distração durante o curso intensivo de alemão que faço aqui, me deparo no Kunsthalle (a galeria de arte mais conhecida na cidade) com a pintura do alemão Caspar David Friedrich, O viajante sobre o mar de névoa (que tem um interessante nome original: Der Wanderer über dem Nebelmeer -1818). Ali está um homem solitário, de pé sobre um rochedo, contemplando o mar de névoa que encobre vales e montanhas, enquanto ao fundo ergue-se um pico iluminado.
A vida talvez seja mesmo isso: um movimento complexo de ir e vir, como as ondas de Lulu Santos: às vezes com a maré, às vezes remando contra, sem saber se amará, mas sempre seguindo em frente. Descobrindo caminhos, pessoas, experiências de ser e existir neste mundo tão vasto, onde eu não me chamo Raimundo, mas ainda assim tento buscar a rima e remar a favor da maré. Porque, afinal, como um poeta, aprendi que assim é amar (e o mar) – (Portal iBOM / Vander André Araújo é advogado, filósofo, escritor e aposentado / Fotos: arquivo pessoal Vander André).

