Família Correia: a língua que nos une e nossas memórias

 

VANDER ANDRÉ ARAÚJO – Viver em um país estrangeiro traz, sem dúvida, os seus desafios. Um dos principais, na minha opinião, é a comunicação. Tenho sentido isso na pele (e no ouvido também) aqui na Alemanha, onde o idioma é conhecido por sua complexidade. A falta de domínio da língua local dificulta a aproximação entre as pessoas, impede o compartilhamento de experiências e pode gerar conflitos nas relações interpessoais.

Talvez por isso tantas pessoas invistam tempo e dinheiro em intercâmbios, cursos de idiomas e se dediquem intensamente para compreender o outro em momentos de convivência. Se posso dar um conselho, é este: comece agora mesmo a aprender uma nova língua!

Essa não era a minha realidade há algum tempo, em Bom Despacho, onde eu ainda participava com frequência de encontros com pessoas conhecidas, que falavam “a minha língua”, especialmente aos domingos, quando costumava ir à missa na Capela da Santa Casa.

Domingo de manhã e lá estava o casal, Dona Sãozica e seu Alberto Correia, assentados nos primeiros bancos daquela igreja, participando ativamente da missa do padre Pedro. Eu gostava de acompanhá-los na volta para casa. Ela vinha contando casos em voz alta (e eu entendia tudo!), soltando uma gargalhada de vez em quando; ele, com sua discrição peculiar, apenas a apoiava pelo braço, sem nunca reprimir, enquanto subíamos a rua Padre Vilaça até o momento em que eles se despediam, virando à esquerda na João XXIII.

Alberto e Sãozica no dia do casamento

Ambos nasceram em Bom Despacho, ele na região do Córrego das Pedras, próximo à Vila Gontijo. Durante muitos anos, viveram com os filhos na Rua da Biquinha, de onde estes guardam vivas lembranças, especialmente das lavagens de roupa feitas por lá.

A filha Marlene me contou que Dona Sãozica sempre foi uma guerreira incansável. Nunca se limitou apenas à criação dos filhos: fazia doces para vender, sendo o pé-de-moleque, em especial, famoso na cidade, vendido nas barracas do Juca e do Zé Mauro. Chegou a ter uma pequena fábrica de doces e produzia também pirulitos. Muito habilidosa, fazia sabão caseiro, enfeites, garrafas decoradas, mantendo-se sempre ativa, até alcançar o sonho de abrir sua própria loja na Praça da Matriz: a tradicional Detalhes Boutique, que funcionou por anos em frente ao Banco do Brasil.

Apesar de ter cursado apenas os primeiros anos do ensino primário, Dona Sãozica aprendeu muito com a vida e foi exemplo de determinação e criatividade. Seu Alberto trabalhou anos como fiscal do Estado de Minas Gerais. Confira mais conteúdos seguindo o Jornal no Instagram.

Sempre fui fã dos dois. Tinham um jeito único de encarar a vida, souberam conduzir bem o comércio e formaram uma família numerosa, da qual falarei a seguir. O casal teve dez filhos, dos quais dois faleceram ainda muito crianças.

Antes de abrir a loja na Praça, Dona Sãozica trazia para a gente de Bom Despacho as novidades do exterior, que apresentava aos clientes num quartinho ao fundo do alpendre da casa, na rua São José. Os produtos importados tinham nomes estranhos, numa língua que a gente tentava entender. Um deles, por exemplo, era o perfume mais desejado pelas mulheres nos anos 1980, Anaïs Anaïs (Cacharel), que pronunciávamos assim mesmo, sem atentar para que o nome original era o francês, vindo diretamente da Ciudad del Este.

O tênis branco era uma grande novidade, perfume com cheiro de café, relógios, calculadoras, rádio toca-fitas para carro, roupas e uma infinidade de produtos dos longínquos Paraguai e Argentina. Para mim, naquele tempo de poucas viagens além de Bom Despacho (em que já achava a vizinha Dores do Indaiá quase uma terra estrangeira), tudo aquilo soava como algo vindo nas caravelas dos já esquecidos invasores das terras de Vera Cruz.

Eu sabia que ela fazia essas viagens de ônibus, num percurso de mais ou menos 24 horas até Foz do Iguaçu. E mesmo cansada após tanto tempo na estrada, não perdia tempo: logo estava com fila de clientes na porta para pegar os melhores produtos.

O destino quis que eu trabalhasse com dois dos seus filhos. O Luiz Alberto, companheiro de longa data no Banco do Brasil, inclusive quando me mudei para Divinópolis, e a Janaína, colega nos tempos em que fomos menores aprendizes na agência do BB, em Bom Despacho.

A família Correia é grande, bastante conhecida e tem uma história de contribuição marcante para Bom Despacho. As irmãs Sandra e Sueli Correia deixaram um legado significativo na área da educação, após 30 anos de trabalho no Colégio Novo Ser, onde foram responsáveis pela educação nos anos iniciais de milhares de crianças da nossa cidade. Recentemente, elas surpreenderam a comunidade ao decidirem mudar os rumos da vida profissional, buscando descansar um pouco, estudar, fazer cursos e atualizações na área pedagógica, abrindo espaço para novos projetos e realizações pessoais.

Marlene Correia, aposentada da Caixa Econômica Federal, participa ativamente do Coral Voz e Vida desde a sua fundação, atuando como uma das vozes que encantam o público em diversas apresentações. Ela fala com entusiasmo sobre os projetos desenvolvidos pelo grupo, destacando especialmente o “Crescendo com Música”, que oferece formação musical para crianças e jovens da cidade.

Outra integrante da família que trilhou novos caminhos é Janaína Correia. Ela também integrou o Coral Voz e Vida antes de se mudar para Brasília e, posteriormente, para a Suíça (onde, assim como eu, também teve que se dedicar ao estudo da língua alemã), e retorna à cidade após quase três décadas.

No ano passado, ela decidiu voltar a Bom Despacho, e desde então vem se dedicando a uma nova missão: o acolhimento e o cuidado com o bem-estar emocional e energético das pessoas.

Contabilidade é um marco nessa família. Luiz Alberto manteve durante anos um escritório de Contabilidade em Divinópolis. Os irmãos Alberto Júnior e Sônia também são destaque na comunidade empresarial local; e também o Aluísio, carinhosamente conhecido por “Lu”, trabalha com filhos genro e nora em consultoria e contabilidade.

Luiz Alberto teve uma longa e respeitada trajetória na agência do Banco do Brasil em Bom Despacho, onde trabalhou ao lado de muitos colegas e amigos, como eu. Posteriormente, transferiu-se para Divinópolis, onde veio a falecer, deixando saudades.

Os saudosos Dona Sãozica e Seu Alberto, patriarcas dessa família admirável, certamente se orgulhariam do legado construído por seus filhos, que continuam a crescer, empreender e servir à comunidade com amor, solidariedade e dedicação.

A volta de Janaína a Bom Despacho representa a continuidade dessa história, com novos propósitos, mas com o mesmo compromisso com o bem comum. E, com ela, agora do outro lado do mar, eu tenho trocado as primeiras mensagens em uma língua que nos une, o alemão, em papéis invertidos: ela em Bom Despacho e eu em Hamburgo! (iBOM / Vander André Araújo é advogado, filósofo, escritor e aposentado).

 

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