Memórias alemãs em Bom Despacho

 

VANDER ANDRÉ ARAÚJO – Na celebração dos 113 anos de Bom Despacho, considero oportuno relembrar um fato histórico que marcou profundamente o progresso e o desenvolvimento da nossa cidade: a imigração alemã no Centro-Oeste de Minas.

Família Walder na casa da Colônia Álvaro da Silveira.

Mais do que uma lembrança, essa história se conecta diretamente com o meu momento atual, pois estou vivendo na Alemanha, dedicado a conhecer novas culturas e a trocar experiências. Quem sabe, no futuro próximo, essas vivências possam inspirar propostas de mudança em nossa cidade e melhorias baseadas no que aprendi, ouvi e li em terras estrangeiras.

Há pouco mais de um século, entre 1920 e 1921, o então governador de Minas Gerais, Artur Bernardes, determinou a criação de duas colônias agrícolas em Bom Despacho: Álvaro da Silveira, com 88 famílias, e David Campista, com 36 famílias, esta última localizada na Fazenda Cachoeira do Picão. O objetivo era receber imigrantes alemães e impulsionar o desenvolvimento agrícola e industrial da região. A colônia David Campista homenageia o diplomata, músico, pintor e político carioca David Morethson Campista, que foi embaixador do Brasil na Dinamarca.

Cemitério dos Alemães – Nas margens da estrada rural para o Vilaça, o velho cemitério desleixado e esquecido abriga em seu seio dezenas de alemães que deixaram uma Europa arrasada e empobrecida pela 1ª Guerra Mundial (1914/1918) e adotaram Bom Despacho como sua segunda pátria: tornaram-se pequenos proprietários rurais, trabalharam e criaram as famílias, na Colônia Germânica Davi Campista.

Esses imigrantes que chegaram em Bom Despacho, embora muitos já tivessem experiência na indústria em sua terra natal, possuíam raízes agrárias e um profundo conhecimento de práticas agrícolas. Chegaram ao Brasil após alguns deles cumprirem quarentena na Ilha das Flores, no Rio de Janeiro, e logo introduziram novas técnicas que contribuíram significativamente para o progresso local.

Ainda hoje, na área da antiga colônia David Campista, existe um cemitério, um tanto esquecido, onde repousam alguns dos primeiros colonos. São vestígios físicos de uma história que moldou parte da identidade de Bom Despacho.

O contexto da chegada dos alemães coincidiu com um período de efervescência no município. Em 1922, foi concluída a construção da Estrada de Ferro Paracatu, que trouxe oficina, vila operária e escritórios para os ferroviários. Surgiram também projetos para a instalação de uma companhia têxtil, uma usina hidrelétrica e até uma siderúrgica. Todo esse cenário tornava a imigração qualificada cada vez mais estratégica para os planos de modernização da cidade.

Percebendo a relevância histórica e as infinitas possibilidades que poderiam ser exploradas pelos cidadãos bom-despachenses, em 20 de novembro de 2020, o colunista do Jornal de Negócios, Lúcio Emílio vislumbrou o potencial turístico dessa história ao propor: “A Colônia dos Alemães, restaurada, poderia encerrar a noite com um jantar típico da culinária alemã, como nos tempos dos imigrantes. Os próprios descendentes poderiam contar a história de seus antepassados, mostrando utensílios, vestimentas e melodias daquele passado.”

Ruínas da estação ferroviária da Colônia Álvaro da Silveira

Maria Antônia Seidlder Kohnert Gontijo Teixeira, em seu importantíssimo livro Kolonie 1920-1925 (disponível na Biblioteca Pública de Bom Despacho), conforme nos relatou o Prof. Tadeu Teixeira na sua coluna para o Jornal de Negócios de 16.04.23, “revela tesouros genealógicos de seu povo, principalmente em Bom Despacho, com fotos reveladoras, preciosos documentos, um belo cabedal de citações de um grande número de famílias germânicas que aqui vieram viver, depoimentos, artigos de terceiros, valiosos necrológios, trajetórias de antepassados que participaram de guerras, como a Primeira e a Segunda Guerra Mundial e até na China, antes de virem para o Brasil.”

Um pouco mais de cem anos após aquela travessia transatlântica, os caminhos se inverteram. Aqui estou eu, um bom-despachense recém-chegado à Alemanha, na cidade de Hamburgo, a mesma onde o escritor Guimarães Rosa atuou como diplomata durante a Segunda Guerra Mundial. Sua esposa, Aracy de Carvalho, conhecida como o “Anjo de Hamburgo”, trabalhava no consulado brasileiro e ajudou inúmeros judeus a escapar do regime nazista, facilitando a emissão de vistos para o Brasil e, com isso, salvando vidas.

Colônia David Campista

Assim como aqueles imigrantes alemães que, pasme, aprenderam a falar a língua portuguesa com os vizinhos quilombolas da época, hoje também me vejo diante dos desafios de uma nova língua e cultura, desta vez apoiado por professores especializados, a alta tecnologia dos aplicativos de tradução e tantas outras facilidades que o mundo contemporâneo nos proporciona e facilita a vida de quem vive no exterior sem falar a língua local.

Lembro-me do livro “Um Brasileiro em Berlim”, lançado em 1995 por João Ubaldo Ribeiro. Fruto de sua experiência na Alemanha, a obra reúne crônicas publicadas no jornal “Frankfurter Rundschau”, nas quais o autor narra com humor as diferenças culturais entre os dois países. Em uma dessas crônicas, Ubaldo se diverte com as peculiaridades da língua alemã, sentimento que eu também compartilho.

Aqui neste novo país, algumas palavras me causam estranhamento e fascínio ao mesmo tempo. A belíssima palavra “zusammen” (juntos), por exemplo, simboliza bem esse entrelaçamento de culturas. Já “Trabrennbahn” – estação de metrô em Hamburgo onde me perdi recentemente – batizei carinhosamente de “Tá bem bão!”, como forma de lembrar seu nome e saber que já estou próximo de casa (literalmente). Outro exemplo é o verbo alemão “wandern” (caminhar), cuja pronúncia remete curiosamente ao meu próprio nome. Divirto-me com suas conjugações no tempo verbal do presente e fico orgulhoso quando ouço os meus colegas do curso de alemão básico pronunciarem, pois assim fica mais fácil para eles falarem meu nome: “ich wandere, du wanderst…”. Caminhamos juntos nesta difícil aprendizagem!

Dia desses, num momento de saudade, me lembrei de um texto que escrevi em 2022 para o livro “Sobre mim uma sentença” (disponível também na Biblioteca Pública de Bom Despacho). Naquela época, eu nem imaginava que hoje eu estaria aqui em terras germânicas. Naquele ano, revisitando minhas memórias, construí uma narrativa de ficção que resgata a história da cidade por meio de dois jovens personagens, nessa altura do enredo: “Eu vivia ali naquele território, com poucos amigos nessa fase da vida juvenil. Havia um deles, o Zico, um menino lindo, de olhos azuis e cabelos loiros, tal qual o Jesus que nos mostravam nas pinturas da igreja, convencendo-nos da sua origem europeia.

Ele era filho do alemão que viveu na Colônia David Campista, na zona rural, e abrira um comércio na esquina de casa, onde vendia seus produtos sem muita habilidade e pouca cara de negócio, completados pela sua incompreensão da língua, respondendo sempre com seu alemão arcaico quando não queria que o freguês entendesse sua ira.

Seu pai era neto de um colono que viera da Alemanha para lavrar a terra, ainda nos anos 1920, por causa da Guerra, e por lá ficou junto com os demais descendentes. Contam que o pouco de Português que ele aprendera foi com os quilombolas que viviam ao lado da Colônia.” (Hamburgo, 14.05.25)

Entre tropeços linguísticos e descobertas culturais, reconheço ecos do passado da minha cidade natal neste meu presente estrangeiro. A memória daqueles que cruzaram o Atlântico para formar uma nova vida em Bom Despacho/MG continua viva e, de alguma forma, me acompanha pelas ruas da Alemanha, nesses dias de frescor primaveril. (Portal iBOM / Vander André Araújo é advogado, filósofo, escritor e aposentado / Foto do alto: Estação Álvaro da Silveira (Bom Despacho/MG) – E. F. Paracatu (1921-1931) – Rede Mineira de Viação (1931-1965) – V. F. Centro-Oeste (1965-1975) – RFFSA (1975-1994) – Ramal de Paracatu – km 943,017 (1960) MG-2476 – Inauguração: 31.10.1921 – Uso atual: abandonada sem trilhos).

 

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