“Foi nos bailes da vida” do Sábado de Aleluia no CBD
O baile de Aleluia fazia parte da programação do Clube Bom Despacho, que também se esmerava nas noites de debutantes, carnaval e réveillon. O prédio, que em 2027 completará 100 anos de fundação, já foi palco de grandes eventos
VANDER ANDRÉ ARAÚJO – Passado o tempo das abstinências, penitências e outras ações que tantos amigos faziam (e ainda fazem), especialmente os católicos neste período quaresmal, chega, enfim, o dia da Páscoa, que é antecedido por uma noite de sábado de Aleluia. E é sobre essa noite especial que eu quero falar. Mas, antes disso, me deixem contextualizar essa história.
Sempre que decido resgatar o passado, trazendo lembranças de um tempo remoto em Bom Despacho/MG, surge alguém para comentar: “Mas você deveria falar do futuro, nossa cidade precisa olhar para frente!” E eu pergunto: o que será do nosso futuro sem uma pausa no presente para refletir sobre o que fizemos até agora? Soma de erros, delírios, fantasias, indecisões, tentativas vãs, tudo isso aconteceu conosco, seja ontem ou há mais de 40 anos, período que será o foco desta crônica. Portanto, me perdoem mais uma vez, lá vou eu para o passado resgatar mais uma história e tentar acertar o passo.
Os dias eram bem mais frios naquele mês de abril dos anos 1980. As noites, então, melhor nem comentar. A gente usava até cobertor de orelhas, ou não, e ar-condicionado era coisa do estrangeiro. Eu ainda frequentava bastante as homilias na igreja, vivendo com fervor o período quaresmal, passando por ritos como a confissão e, é claro, algumas penitências. Minha família (privilegiada, por que não dizer?) não comia carne às sextas-feiras. E nos quarenta dias que antecediam a Páscoa, alguns decidiam evitar os excessos: álcool, açúcar, refrigerante e outras coisas gostosas e prazerosas da vida cotidiana, que nem sei se posso comentar…
A Sexta-feira da Paixão chegava e transcorria demoradamente, e era quando nos preparávamos para a tradicional procissão final da semana santa. Logo na madrugada, tias, tios, eu e alguns primos (alguns em jejum) fazíamos uma peregrinação por todas as igrejas católicas de Bom Despacho. Era um sacrifício sair tão cedo, rezando terços e cumprindo o roteiro pelos mais distantes templos. Todos fechados àquela hora da manhã. Fazíamos nossas orações, muitas vezes, ajoelhados nas escadarias, em frente às portas ainda lacradas. Depois, era tempo de chegar em casa, descansar os pés, reforçar o café da manhã e já começar a pensar no almoço: bacalhoada, sardinha ou ovo frito, dependendo do preço, do ágio, da inflação, do reajuste zero do salário, da fila na Dirol. Porque, nesse dia, carne vermelha… nem pensar!
À tarde, as crianças passavam pelas ruas oferecendo velas para os fiéis queimarem durante a procissão. Era uma disputa para ver quem comprava a maior, a mais bonita, a mais barata e preparava o apoio, tipo uma touca alada das aias, para não pingar parafina derretida em ninguém, o que poderia ser entendido como mais um pecado (e o ato de contrição já fora dito…).
A procissão tinha horário para sair, mas dependia do término do sermão do padre que, em alguns anos, demorava muito a liberar o canto da Verônica — que ecoava triste naquele silêncio coletivo, fazendo até as crianças pararem o arrelio. A partir de então, caminhávamos pelas ruas centrais da cidade, auxiliados pela Rádio Difusora e pelo professor Elvino, que dava o tom das canções tristes e terços dentro da Matriz. Morrendo de medo do som das matracas que pediam silêncio, saíamos contritos, abraçados talvez, repetindo Ave-Marias e Pai-Nossos, inclusive na Rua da Garça, quando já batia um cansaço na perna (com o perdão do trocadilho). Alguns de nós cortávamos caminho e já estávamos quase de volta à Praça da Matriz, bem antes da chegada do esquife, prontos para a dispersão, com semblante de dever cumprido e um saco de pipocas para enganar o estômago.
Ao final disso, a noite era de vigília, porque no dia seguinte comemorávamos o tão esperado Sábado de Aleluia, razão de eu ter escrito tudo isso até aqui! A cidade parecia renascer. O movimento era grande nas ruas, os salões de beleza se enchiam de mulheres pleiteando novos penteados e maquiagem. As lojas insistiam em vender as roupas que ainda restavam, tudo para que os privilegiados sócios de carteirinha ficassem bonitos na fita para o tão sonhado Baile de Aleluia.
O baile fazia parte da programação do Clube Bom Despacho, que também se esmerava nas noites de debutantes, carnaval e réveillon. O prédio, que em 2027 completará 100 anos de fundação (é bom lembrar!), já foi palco de grandes eventos, muitas comemorações — incluindo a festa dos meus 40 anos, em 2011.
Ano passado, vi o poder público anunciar, com pompa e circunstância, que o prédio do Clube Social passaria por uma reforma e se transformaria na tão esperada Casa de Cultura de Bom Despacho. O assunto esfriou e, recentemente, soube que o projeto foi arquivado na Câmara, a pedido do mesmo Executivo, numa sessão extraordinária realizada em dezembro, que assisti posteriormente pelo canal do Youtube da Câmara.
Mas, voltando para nossa história — essa outra, mais comovente no momento — acessar o Clube Social, naquela época, era para poucos e “bons”. Muitos diziam que era só para a nata, o que chamamos de elite. Restava-me, então, acompanhar de camarote (se é que se pode chamar assim o espaço onde eu me colocava atento) a entrada dos convidados naquela noite de gala, após a conferência do Becão naquele portão de grades extensas.
Os convidados enchiam o salão, as bandas vinham de fora e se acomodavam naquele palco minúsculo, mas o som era potente e eu ouvia tudo do lado de fora, ou seja, eu era mais um da banda de fora. Os hits do momento tocavam em alto e bom som. De lambada a Michael Jackson, Gloria Gaynor e Sidney Magal, até o romantismo do (ironia minha) Roupa Nova, Lionel Richie e Diana Ross. Tudo eu ouvia, e me imaginava um dia também ali dentro, naquele salão, dançando contente, celebrando, juntamente com aquela gente fina, elegante e sincera, enfim, o apagar das luzes (outra ironia) daquela noite, à espera da tão desejada manhã de Páscoa.
Sem beber (e sem comer há horas), sem dançar, apenas sonolento por causa da minha vigília na porta daquele clube tão movimentado e requintado, partia finalmente para casa nos primeiros minutos daquele domingo de ressurreição. Afinal, o dia seguinte prometia: a celebração da Páscoa e seus exageros familiares, o fim das penitências, o almoço com direito a tudo o que houvesse disponível. Ovos, dessa vez, de chocolate. E, enfim, a retomada do nosso tempo comum.
E foi assim, como canta Milton Nascimento, “nos bailes da vida, ou num bar em troca de pão, que muita gente pôs o pé na profissão” e eu saí por aí, tendo que me rebolar para conquistar meu salário ao final do mês, renovando minha coragem a cada amanhecer, dançando conforme a música, sem nunca perder a capacidade de sonhar e de renascer após cada paixão. (Portal iBOM / Vander André Araújo / Imagem gerada por IA).