Sérgio Cabral: o médico humanitário além fronteiras

 

VANDER ANDRÉ ARAÚJO – Uma das carreiras mais almejadas pelos estudantes brasileiros atualmente é a de médico. Há tempos acompanho, ainda que à distância, a trajetória do médico humanitário bom-despachense Dr. Sérgio Cabral, que atua na organização Médicos Sem Fronteiras. Recentemente ele terminou mais uma missão, a sua terceira vez no Afeganistão. Agora, aproveita a chegada do primeiro neto ao lado da filha Kerly, na Espanha. Kerly nasceu em Cuba, cresceu na Noruega e, há cinco anos, estabeleceu-se na Espanha.

Sérgio Cabral, de 59 anos, tem uma companheira, também humanitária, que conheceu em Bruxelas. Ele viveu em Bom Despacho até os 17 anos e cursou o antigo “segundo grau” no Estadual Central, em Belo Horizonte, antes de retornar a Bom Despacho em 1985 para prestar o Serviço Militar. Depois, mudou-se para Brasília e, em 1988, voltou a Belo Horizonte para se preparar para o vestibular. Naquele ano, conquistou uma bolsa de estudos em Cuba, onde viveu por seis anos.

Afeganistão

O médico Sérgio Cabral formou-se em julho de 1994 no Instituto Superior de Ciências Médicas de Camagüey, em Cuba. Após a graduação, retornou a Bom Despacho por seis meses antes de se mudar para Montes Claros, onde se especializou em Pediatria. Em 1998 concluiu a especialização em Cardiologia Infantil em Belo Horizonte e, em 1999, retornou a Bom Despacho, passando também a atender em Martinho Campos e Pompéu. Posteriormente, fez mestrado em Psicopedagogia e três pós-graduações: Atenção de Emergência Pré-hospitalar, Gestão de Projetos Sociais do Terceiro Setor e Gestão de Saúde Pública.

Até meados de 2007, manteve um consultório em Bom Despacho, além de atuar no PSF, na Policlínica e na Santa Casa. Em 2022, fez uma pausa nos trabalhos humanitários e voltou a atender na Santa Casa. Em 2007, Sérgio Cabral ingressou no Médicos Sem Fronteiras e passou a viajar com frequência, mantendo o Brasil como sua base, exceto durante os quatro anos em que viveu na Bélgica. Em 2012, decidiu retornar a Bom Despacho, onde assumiu o cargo de vice-prefeito na gestão de Fernando Cabral e Secretário de Saúde por oito meses.Ao final de seu mandato como vice-prefeito, Dr. Sérgio decidiu retomar suas missões com os Médicos Sem Fronteiras (MSF). Conversei com esse menino que cresceu na “cidade sorriso”, sobre suas experiências nesse belíssimo trabalho humanitário. Quando lhe perguntei qual missão havia sido a mais marcante, ele me respondeu: “Praticamente todas foram marcantes, por grandes alegrias ou tristezas. Eu tenho um perfil ‘urgentista’ e as urgências humanitárias são as mais difíceis e mais complexas, em locais de alto risco, onde se trabalha ‘ligado’ nas necessidades humanitárias da população, mas também, nos riscos iminentes que o trabalho humanitário pode impor.

Haiti

Seja o atendimento durante uma pandemia, no decorrer da qual você também se expõe ao risco de adoecer, seja em conflitos armados, seja numa catástrofe natural, como um terremoto, que poderia se repetir a qualquer momento, entre outras situações. Estas situações diversas, ao longo das quais se vivencia experiências difíceis e é necessário atenção constante, são marcantes. Expor-se a elas nos deixa com mentes e coração fortes, mas também vulneráveis. Então, sempre há situações marcantes, seja por enfrentar grande sofrimento humano ou por momentos bonitos que podem acontecer, como conhecer pessoas amáveis e resilientes, seja num sorriso de agradecimento que te recupera as energias, ou numa lágrima que tentamos esconder para não mostrar a nossa vulnerabilidade humana. São nesses momentos que se descobre a nossa dualidade, que a nossa fortaleza está sempre acompanhada de nossa fragilidade. Se a fragilidade dominar, a gente não consegue prestar um bom serviço. Se a fortaleza dominar, podemos perder a humanidade. Então, são muitas as situações marcantes. Destes ambientes catastróficos, eu tenho gravado, em minha mente, muitas lágrimas, algumas minhas, mas também, muitos sorrisos”.

Sudão

Sua missão mais recente foi no Afeganistão, embora inicialmente tivesse recebido uma proposta para atuar em Gaza. Dr. Sérgio chegou a aceitar a oferta, mas, pouco depois, informaram-lhe que a necessidade era ainda maior no Afeganistão, onde sua experiência se encaixava perfeitamente. Buscavam alguém com conhecimento em pediatria e neonatologia, além de um forte perfil de negociador para lidar com as autoridades locais.

Quanto ao seu próximo destino, ele ainda não sabe. Algumas propostas já surgiram, mas, por enquanto, quer aproveitar a companhia da filha e do neto. Depois, planeja viajar um pouco com sua namorada antes de decidir seus próximos passos. Ainda não tem uma data exata para retornar a Bom Despacho, mas garante que será em poucos meses.

Sudão

Entre as curiosidades que levantei sobre os desafios no seu trabalho humanitário, perguntei sobre como ele se comunicava com os pacientes e as suas famílias no Afeganistão, um país de língua persa. Em missões em que se falam línguas que os profissionais não dominam, eles são auxiliados por tradutores. No Afeganistão, a equipe fala inglês, e os trabalhadores como os da limpeza, motoristas e porteiros têm noções do idioma, o que facilita bastante a comunicação, especialmente para ele, que gosta de ter conversas informais com todos, ouvir suas histórias e aprender mais sobre a vida no país. Sérgio trabalhou em Cabul e Mazar, mas, como coordenador, passou a maior parte do tempo em Mazar, dando apoio direto à equipe do projeto e reunindo-se com autoridades locais. Sérgio se comunica em francês, inglês, espanhol e português. Com essas línguas, consegue se conectar com pessoas de muitos países.

Quando questionado se mantém um diário das suas viagens e missões pelo mundo, registrando sua história “no papel”, Sérgio responde que não. Ele escreveu um “diário de bordo” durante sua segunda missão, em 2008 no Sudão, que foi publicado na página web da MSF. Às vezes, faz algumas anotações, mas não consegue seguir adiante com isso, embora prometa que, talvez um dia, se dedique a escrever de forma mais consistente.

Sobre os registros fotográficos, Sérgio me explicou que, em algumas culturas, as pessoas não gostam de ser fotografadas, e em países em conflitos, elas podem questionar o motivo de alguém tirar tantas fotos. Por essas razões, o ideal é evitar tirar fotos. E conclui: “Nosso trabalho impõe disciplina e regras. Elas ajudam na nossa segurança e são importantes também do ponto de vista que pacientes e outras pessoas vulneráveis não são atrações fotográficas. Nosso trabalho não é turismo nem uma ação de “youtuber. Não costumo divulgar estas fotos”.

Decidi abordar o fato de que, no Brasil, os cursos preparatórios para Medicina estão se tornando cada vez mais comuns e pedi a ele que deixasse uma mensagem para os jovens que sonham em se tornar médicos. Ele me respondeu: “Acho complicado passar mensagem deste tipo, porque arriscamos cair no ‘puxão de orelha’ ou na ‘lição de moral’. E é difícil porque é um coletivo heterogêneo, no qual, há aqueles que veem a medicina como uma profissão lucrativa e aqueles que a veem como uma missão. Mas para não ficar sem resposta e tentando não ser chato, vamos lá. Para aqueles que queiram fazer medicina pensando, também, no paciente e na saúde pública, eu diria, primeiramente, que não basta ter o diploma. É necessário aprender, porque, para este tipo de profissional, a medicina é desafiadora, mas gratificante. E só é gratificante se puder impactar positivamente a vida das pessoas e do coletivo. Se puder, pelo menos, aliviar sofrimento e contribuir para o bem-estar das pessoas. Acho que a mensagem fundamental é sugerir que mantenha sempre o ‘porquê’. O mesmo ‘porquê’ que te levou a estudar Medicina: foi a paixão por cuidar das pessoas? Esta pergunta, seguida da sua resposta será a motivação para continuar estudando e se dedicando ao bem-estar de outros seres humanos”.

Para aqueles que desejam seguir uma carreira semelhante à dele, na Medicina sem Fronteiras, Sérgio recomenda: “Acho que todos deveriam fazer uma missão humanitária, pelo menos uns 6 meses, um ano. Não um trabalho voluntário, não uns dias de suas férias ‘ajudando’ alguns pobrezinhos, mas um trabalho humanitário de verdade. Mesmo que depois decida voltar à sua rotina habitual, vai aprender muito sobre o sofrimento humano e, fundamentalmente, sobre você mesmo e sobre o que é a Medicina. O trabalho humanitário é nobre e transformador. Eu sugiro que leia os ‘Diários de Bordo’ na página de MSF, onde encontrará histórias fantásticas que te ajudarão a ter uma visão das experiências de alguns humanitários pelo mundo”.

Em uma entrevista em 2010, Sérgio confidenciou a Fernando Cabral que “quando ganhava minha roupinha, usava até que o umbigo ou as canelas ficassem de fora. Muitas vezes, essas roupas não chegavam a mim, pois meus pais consideravam que outra pessoa necessitava mais do que eu”. Resolvi perguntar a ele se acreditava que o desejo de ajudar o próximo surgiu ali e, além dos seus pais, quem mais o havia inspirado nessa missão humanitária. Ele me respondeu: “Venho de uma família humilde. Éramos 14 irmãos, então as roupas passavam de um irmão/irmã para @ outr@, e eu era o mais jovem dos homens, mas sou só um ano mais novo que o Marcelo meu irmão. Então, como usávamos as roupas até que não servissem mais, quando elas já não serviam para ele já estavam um pouco curtas para mim, mas aquilo me parecia normal. Apesar de sermos muitos filhos, nunca nos faltaram roupa, comida e material escolar, e ainda assim meus pais eram muito solidários e a minha casa sempre tinha mendigos, pobres e as pessoas em vulnerabilidade social que vinham por um prato de comida, que nunca lhes foi negado. De modo que posso dizer que a minha educação humanitária ‘veio de berço’. Ter ido para Cuba estudar também ajudou muito nessa aprendizagem, já que o cubano é muito solícito a ajudar outros povos pelo mundo. Estudando em Cuba e convivendo com o povo cubano aprendi muito. Foi ali que pude solidificar a visão política e ideológica que rege a solidariedade, o humanitarismo e o apoio mútuo no país e internacionalmente. Foi em Cuba que descobri que as dimensões e o alcance do humanitarismo eram muito maiores do que eu imaginava”.

Falando sobre suas primeiras viagens, Sérgio mencionou que a primeira foi para a cidade de João Pinheiro, a 360 km de Bom Despacho. Na época, sentiu como se estivesse dando a volta ao mundo, encantado com os diferentes sotaques. Quando perguntei como vê isso hoje, por quantos lugares já passou e quais seriam esses sotaques agora, Sérgio me contou: “Naquela época, eu ainda era uma criancinha, achei que aquela viagem era uma viagem sem fim. Muitas rodovias eram de terra, o que aumenta a aventura, seja pela poeira ou pelo barro. Como criança, aquela viagem me marcou muito, pela distância, pela diversidade geográfica, cultura e os sotaques. Eu ficava fascinado apreciando as vilas, as casas, o comportamento das pessoas que eram muito distintos do nosso e como falavam diferente, com palavras e expressões que eu não conhecia. De certa forma, eu comecei a viajar rumo a João Pinheiro e continuo até hoje. Aquilo foi o começo, e quanto mais ando, mais caminhos encontro pela frente. Acho que tomei gosto pela diversidade cultural, geográfica, culinária, linguística, econômica, religiosas, tristezas, alegrias… Já visitei quase 50 países, então acho que de certa forma a gente passa a ser um pouco de tudo”.

Na mesma entrevista a Fernando Cabral, Sérgio falou sobre seu sonho de refazer a viagem do personagem de Diários de Motocicleta (filme dirigido por Walter Salles e escrito pelo dramaturgo porto-riquenho José Rivera, em 2003), mas nunca teve dinheiro para realizá-lo. Perguntei se esse sonho ainda existia, e ele me respondeu: “Sim, ainda existe. E provavelmente mais forte do que antes. A terra é redonda e finita, mas a aprendizagem não, ela é multidimensional e infinita. Voltar a um mesmo lugar já conhecido, é como reler um livro ou rever um filme, se descobre muitas nuances que não havia percebido antes. Quanto mais conheço as pessoas, e tento absorver suas verdades, mais quero seguir nesta ‘moto’ pelo mundo. Mas, apesar de ter viajado por muitos países, já ter novas viagens programadas, e conhecer nove países da América Latina, a viagem ‘do diário’, não me abandona. Para um latino-americano viajar pelas Américas é enriquecedor emocional e culturalmente. Esta é uma região que contém uma diversidade impressionante de culturas, histórias e geografias. Conhecer esta região é importante para conhecer nossas raízes e identidade que todos os latinos compartilham. Então, acho que é parcialmente uma aventura, e parcialmente uma conexão com nossas raízes”.

Sérgio também tem experiências enriquecedoras para compartilhar sobre o período em que viveu em Cuba e fez a sua formação em Medicina. Ele afirma que lá aprendeu a ser mais solidário. Pedi que ele me contasse como foi essa aprendizagem: “O cubano é muito solidário e está em vários países do mundo. Conheci muita gente que havia trabalhado como médico, enfermeiro, professores, engenheiros, e outras profissões, em muitos países. Me encantava ouvir as suas experiências e as suas histórias. Dava gosto ver o brio deles ao fazer e ao falar do trabalho voluntário ou do trabalho humanitário internacional. Não há como não ser marcado ao presenciar e participar de uma cultura tão positiva e solidária. Foi uma experiência importantíssima quando descobri as profissões dos pais de meus colegas de Medicina: ali estavam filhos dos retireiros de fazenda, do pedreiro, da balconista, do médico, do pescador, do engenheiro. Ou seja, todo mundo tinha a oportunidade de estudar e fazer a Universidade”.

Ao falar sobre espiritualidade, Sérgio disse que conhecer o mundo o ajudou a se conhecer melhor e que esse autoconhecimento se intensificou no Camboja, especialmente no aspecto espiritual. Embora não tenha se tornado budista, ele compartilhou as lições que aprendeu por lá: “No Camboja, percebi que a bondade das pessoas era genuína e compatível com o cristianismo puro que aprendi na infância. Nos fins de semana e feriados, saía de bicicleta sem rumo, interagindo com os moradores locais ao pedir água ou admirar a paisagem e conhecer as suas casas. As pessoas, embora pobres, me acolhiam com carinho e simplicidade. Em conversas com monges, trocávamos experiências sobre o Brasil, o budismo e suas trajetórias de vida. Refletia sobre como um país marcado pela violência podia abrigar tanta gentileza. Essas vivências aprimoraram meu caráter humanitário e me abriram ao novo e ao diverso, incentivando-me a ser melhor e a valorizar a bondade, deixando de lado o negativismo”. (Portal iBOM / Vander André Araújo / Fotos: Arquivo Sérgio Cabral).

 

One thought on “Sérgio Cabral: o médico humanitário além fronteiras

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *